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Caso Hannah-Jones expõe a ‘guerra cultural’ de Trump, importada pelo governo brasileiro

Vencedora do Pulitzer, a jornalista desistiu de lecionar em sua alma mater após a universidade vacilar diante de patronos extremistas

FOTO: Shealah Craighead/The Official White House)
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A jornalista Nikole Hannah-Jones nasceu no ano do bicentenário da Independência dos EUA. Por coincidência ou destino, ela chegaria ao ápice de sua carreira propondo que outro evento histórico figurasse como o marco fundador de seu país: a chegada do navio “White Lion” em 1619, trazendo os primeiros escravos africanos da colônia de Virgínia. Batizada de 1619 Project, a série de reportagens publicada no The New York Times rendeu à autora o prêmio Pulitzer de 2020.

Formada em História e Estudos Afro-Americanos pela Universidade de Notre Dame, em Indiana, Hannah-Jones é mestre pela conceituada escola de jornalismo da Universidade da Carolina do Norte. Tornou-se especialista na cobertura de temas relacionados à educação e respeitada na área de estudos de segregação racial. Começou a trabalhar no The New York Times em 2015 e, dois anos mais tarde, recebeu o Genius Award da Fundação MacArthur, um reconhecimento da originalidade, dedicação e criatividade do seu trabalho.

O sucesso abriu as portas para a jornalista ter acesso a milhões de dólares em bolsas de estudo e pesquisa, vinculados a qualquer universidade que lhe oferecesse um cargo de professora. Recebeu numerosas ofertas, inclusive para lecionar na sua alma mater na Carolina do Norte. Para Hannah-Jones, estas não foram as únicas consequências inesperadas. “Eu certamente não poderia prever que, dois anos depois, o projeto ainda estivesse nos noticiários todos os dias,” afirma a jornalista a CartaCapital. E isto porque o presidente dos EUA decidiu que este seria o ponto focal de uma campanha de pânico moral e ressentimento racial.

Donald Trump exigiu que todas as agências governamentais identificassem programas, contratos ou propagandas envolvendo “teoria crítica racial”, “privilégio branco” ou qualquer tentativa de ensinar ou sugerir que os EUA seja intrinsicamente racista ou maléfico. Em mais de uma ocasião, o republicano disse que a ação visava banir “ideologias nocivas” que pregavam a divisão da sociedade baseada em gênero e raça. “A Teoria Crítica Racial, o 1619 Project e a cruzada contra a história americana é propaganda tóxica, veneno ideológico que, se não for removido, vai dissolver os laços de cidadania que nos unem”, disse Trump.

Vencedora do Pulitzer, a jornalista desistiu de lecionar em sua alma mater após a universidade vacilar diante das pressões de patronos extremistas

A Teoria Crítica Racial, base do 1619 Project, deriva da Teoria Crítica do Direito, a propor que as leis devam ser interpretadas além da letra fria da legislação, levando em consideração aspectos temporais e noções gerais de justiça e proporcionalidade. Para Thiago Amparo, professor da Faculdade de Direito da FGV, a ideia central da teoria crítica é “discutir as relações de poder que existem na sociedade, seja o poder baseado na questão da sexualidade, como questão moral, seja um poder relacionado à supremacia branca e o racismo estrutural, seja o poder do autoritarismo e do neofascismo na sociedade democrática de hoje”.

A professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e coordenadora do Observatório da Extrema Direita, Isabela Kalil, afirma que o ponto de convergência das teorias críticas é que todas surgem de projetos e disciplinas que analisam criticamente cânones produzidos por grupos de homens brancos dentro de contextos específicos. Assim, as escolas e universidades se tornam um lugar de disputa, pois esta crítica e a inserção de grupos antes excluídos, como negros e indígenas, gera forte reação de extremistas de direita.

Consciente. “Não posso me dar ao luxo de ficar quieta”, afirma Hannah-Jones. (FOTO: Chris Taggart/Columbia University)

Mesmo após a derrota de Trump, 29 estados americanos apresentaram leis banindo o ensino da Teoria Crítica Racial até o início de julho. Rapidamente, os comentaristas de redes de comunicação conservadoras, como a FOX News e Newsmax, passaram a apresentá-la como a maior ameaça à democracia da história norte-americana. De repente, Hannah-Jones não era apenas a primeira mulher negra a ocupar o cargo de Knight Chair na Universidade da Carolina do Norte, mas a primeira Knight Chair a ter uma oferta de estabilidade de trabalho rescindida pelo corpo diretivo da instituição, pendendo deliberação. A novela sobre a concessão do benefício se estendeu por semanas, com alunos e professores protestando contra o conselho administrativo da instituição, que adiou a decisão até o último segundo.

Por trás da dificuldade em cravar uma posição definitiva, havia uma forte pressão exercida pelos patronos e financiadores da universidade, bilionários conservadores do centro-oeste norte-americano. Nisso, há coincidência entre o que acontece por lá e no Brasil. “O ensino superior está sob ataque da aliança neoliberal-conservadora”, observa a professora de Antropologia da UFSC, Letícia ­Cesarino. Para Hannah-Jones, esses ataques são bem organizados. “O propósito é nos intimidar e nos silenciar. Os primeiros a serem atacados são os intelectuais, aqueles que tentam alertar nossas comunidades sobre o que está acontecendo.”

“O Brasil desmantelou suas universidades”, lamenta Jason Stanley, professor de Yale

As instituições públicas não estão imunes a esse tipo de pressão. Para 2021, o governo Bolsonaro reservou apenas 4,5 milhões de reais para custeio e investimentos nas universidades federais, valor 18% inferior ao do ano passado. Segundo a Andifes, a associação dos dirigentes das instituições de ensino federais, o valor representa metade do que elas tinham em 2014, com 100 mil alunos a menos do que possuem hoje. Os cortes de bolsas obrigaram pesquisadores a buscar recursos na iniciativa privada, que nem sempre tem interesse de financiar certas linhas de estudo.

“O estrangulamento da universidade pública é preocupante porque deixa a ciência refém da lógica de mercado e leva a uma perda da autonomia científica, em decorrência da dependência de financiadores movidos por interesses privados”, critica Cesarino. Na avaliação de João Cezar de Castro Rocha, professor de Literatura da UERJ e autor do livro Guerra Cultural e Retórica do Ódio, o cenário só não é mais desastroso porque os professores das universidades públicas são servidores concursados. “Uma das razões pelas quais o governo Bolsonaro deseja ardentemente passar uma reforma administrativa que compromete ao máximo a estabilidade do servidor é exatamente porque, sendo da universidade pública, eu tenho liberdade de cátedra e de pesquisa para escrever os livros que eu escrevo.”

No Brasil, também existem movimentos que buscam banir temas das escolas e universidades pela via legislativa. O Escola Sem Partido, para citar um exemplo, diz defender um ensino “politicamente isento” para cercear os debates, apresentando os seus pontos de vista como não-ideológicos, enquanto qualquer ideia contrária é apontada como carregada de viés político. Para Kalil, o passado do ensino no Brasil, essencialmente religioso, torna pautas ligadas à moralidade cristã, como as discussões de gênero, feminismo e sexualidade, tão centrais como as questões raciais são no EUA. O exemplo máximo disso foi o furor criado em torno do “kit gay”, uma mentira sobre material didático que embalou a campanha de Bolsonaro em 2018.

Reflexo. Sem apoio do governo, os alunos brasileiros desapareceram da Universidade de Yale, lamenta Stanley. (FOTO: )

Jason Stanley, professor de Filosofia da Universidade de Yale, acredita que a hesitação da Universidade da Carolina do Norte a desvalorizou aos olhos de profissionais que trabalham ou desejam atuar por lá. Professores controvertidos e inovadores devem levar sua expertise para outros lugares, condenando as instituições de estados com governos conservadores ao descrédito. No Brasil, a situação é mais grave, avalia. “O Brasil desmantelou suas universidades”, lamenta. “Os brasileiros estavam lotando nossos programas de pós-graduação e voltando para se tornarem professores de ponta. Isso tudo acabou. É uma decepção esmagadora.”

Ao cabo, o conselho administrativo da Universidade da Carolina do Norte votou a favor da estabilidade de emprego a ­Hannah-Jones. Ela agradeceu, mas recusou a oferta. Decidiu lecionar na Universidade de Howard, instituição tradicional da comunidade negra norte-americana. “Sempre fui muito consciente de que posso usar o que acontece comigo para ajudar as pessoas que não têm um megafone grande como o meu”, afirma. “Não posso me dar ao luxo de ficar quieta.”

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1168 DE CARTACAPITAL EM 29 DE JULHO DE 2021.

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