Mundo
Biden torce pelo fracasso da Rússia, mas não quer sujar as mãos
Como disse o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenski, ao Congresso dos EUA, armas e sanções não são suficientes


Ao desembarcar em Bruxelas para uma cúpula de emergência da Organização do Tratado do Atlântico Norte, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, apontou orgulhosamente sua grande conquista durante a crise na Ucrânia: manter a unidade da aliança e ficar fora da guerra. Biden quer que a Rússia perca, seja vista como fracassada, mas falta ação ousada e decisiva para esse fim. A abordagem dos EUA é essencialmente reativa, tática, imparcial. Isso é realmente tudo o que a liderança global norte-americana avessa ao risco tem a oferecer nos dias de hoje?
Como disse o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenski, ao Congresso dos EUA, armas e sanções não são suficientes. Os temores dos Estados Unidos de uma escalada são bem compreendidos em Kiev, mas suas forças ainda precisam de aviões de combate, proteção aérea e corredores humanitários seguros.
Mais que isso, a população da Ucrânia precisa de uma liderança ocidental eficaz e inspiradora em apoio aos ideais democráticos que Biden defende. Seus filhos morrem a cada dia, enquanto a Otan age como uma sociedade de autopreservação. Eles precisam de um salvador. Eles precisam de um plano.
“Você é o líder de sua grande nação. Desejo que você seja o líder do mundo, o que significa ser o líder da paz”, disse Zelenski a Biden, no que soou muito como uma repreensão. O senador republicano Ben Sasse foi mais direto: “Os ucranianos estão lutando pelo mundo livre. Somos uma superpotência. Devemos agir como tal”.
Desdobrando-se em torno das valas comuns e cidades destruídas da Ucrânia está uma nova “guerra eterna” do tipo que Biden prometeu acabar. A julgar por seus últimos comentários, Vladimir Putin não cessará fogo tão cedo.
O presidente dos Estados Unidos precisa de uma estratégia com opções abertas. Primeiro, ele deve parar de garantir ingenuamente a Putin que os aliados não intervirão em nenhuma circunstância. O ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, que sabe um bocado sobre invasões, gentilmente o repreendeu nesse ponto. “É sensato dizer a Putin antecipadamente que, não importa o que ele faça militarmente, descartaremos qualquer espécie de resposta militar?” Foi uma “tática estranha”, escreveu Blair. Alguns ministros britânicos supostamente compartilham sua preocupação.
“Não provocar Putin” é o mais próximo que as potências ocidentais chegaram de uma declaração de missão. Só os Estados Unidos fornecem, no entanto, 2 bilhões de dólares em ajuda militar. As armas antitanque britânicas cobram um preço terrível.
A Rússia visa comboios de armas ocidentais, bombardeou um posto de preparação perto da fronteira polonesa e enviou duas vezes drones militares para países vizinhos integrantes da Otan. Goste ou não, as provocações mútuas se multiplicam descontroladamente.
Biden diz que Putin é um “criminoso de guerra”. Então, agora vai tentar prendê-lo? Os Estados Unidos vão aderir ao Tribunal Penal Internacional apoiado pela ONU, onde crimes de guerra são julgados? Não aposte nisso.
A liderança dos EUA tem sido reativa e tática
Ao deixar a Ucrânia a lutar sozinha, Biden corre o risco de confirmar a antiga visão da esquerda europeia de que a Otan é, principalmente, uma defesa avançada dos Estados Unidos, não um reforço à segurança da Europa ou a proteção do direito internacional. Jens Stoltenberg, secretário-geral da organização, certamente discordaria dessa afirmação. “A Otan não vai tolerar nenhum ataque à soberania aliada”, declarou.
Ótimo. Então, qual é o plano, Jens?
E a chacina ao lado? A Otan liderada pelos EUA não é uma aliança puramente defensiva. As forças da organização lutaram no Afeganistão durante 20 anos. Elas bombardearam a Sérvia no conflito do Kosovo. Um pouco mais de imaginação em Washington e Bruxelas sobre o que pode ser militarmente possível, sem desencadear a Terceira Guerra Mundial, poderia ajudar muito na Ucrânia.
É injusto culpar apenas a liderança fraca dos Estados Unidos. A Otan tem 30 países, principalmente europeus. Apesar do discurso de Biden sobre uma unidade sem precedentes, as rachaduras aparecem. Os países da Europa Oriental, notadamente a Polônia e as três repúblicas bálticas, querem que a Otan e a UE adotem uma postura militar e de sanções mais robusta. Eles também apoiam a adesão da Ucrânia à União Europeia. Alemanha, Itália, Hungria, Grécia e outros se opõem.
Quando os primeiros-ministros da Polônia, da República Tcheca e da Eslovênia viajaram a Kiev para se reunir com Zelenski, Bruxelas apressou-se a deixar claro que não era uma delegação da UE, novamente por medo de provocar Putin. Quando Jaroslaw Kaczynski, o líder polonês, sugeriu uma “missão de paz” armada dentro da Ucrânia, foi repreendido.
Então, qual é o plano, Olaf? O chanceler Olaf Scholz, primeiro-ministro da Alemanha, o país mais poderoso da Europa, aumentou enormemente os gastos com defesa nacional e suspendeu um gasoduto russo. Mas ele rejeita o pedido da Ucrânia por um embargo energético imediato e total e bloqueia ou adia sanções adicionais. Zelenski criticou o histórico da Alemanha, acusando-a de priorizar os interesses econômicos sobre a segurança europeia.
Essas divisões cada vez maiores poderão resultar em uma cúpula da UE explosiva. Acontecerá paralelamente à reunião da Otan. O presidente francês, Emmanuel Macron, está firme no lado alemão. A gigante petrolífera francesa Total, por exemplo, atua como de costume na Rússia. As tensões internas da UE certamente aumentarão à medida que a guerra se arrastar em meio à “fadiga das sanções”.
Já que Biden, a Otan e os europeus não têm uma estratégia de longo prazo acordada para salvar a Ucrânia, poderia ser esse o grande momento da “Grã-Bretanha global”?
Qual é o plano, Boris?
Ah, ele também não tem. Como de costume, o ato de tributo a Churchill da Grã-Bretanha é abraçar Washington com força, independentemente do que ele possa pensar em particular sobre a liderança de Biden. Sua Força Expedicionária Conjunta do Reino Unido tem um cheiro infeliz de Dunquerque.
Orientado pelos Estados Unidos, Boris Johnson foi à Arábia Saudita em busca de petróleo barato e foi ritualmente humilhado por outro assassino em massa. Longe de monitorar a disputa, a Grã-Bretanha, como as coisas estão, nem estará na sala quando a Europa avaliar sua maior crise de segurança e de refugiados desde 1945. Quem teria pensado que o Brexit poderia piorar a situação dos ucranianos? Mas piorou. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1201 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Qual é o plano, Joe?”
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.