Opinião
Ninguém ganhará esta guerra
O dever da comunidade internacional é facilitar a sua coexistência sem conflitos, não o contrário
Esta guerra, todas as guerras, é uma escalada de horror, de violência e de morte. Enquanto decorrem parecem não admitir outras palavras que não sejam de ódio e de vingança. Esta é a armadilha – no momento em que mais são necessárias palavras de paz, nada parece permitido senão o discurso da retaliação. O discurso de paz é covarde, o da desforra é o único possível. E, no entanto, é preciso voltar a dizer que a paz vai exigir mais coragem do que continuar a fazer a guerra. No meio do inferno da guerra, a verdadeira grandeza é a de lutar pela paz.
A primeira coisa que não me agrada no discurso ocidental é que parece estar a se consolidar um ambiente intelectual que nada admite que seja dito, além da condenação sem reservas da agressão russa. Condene e cale-se. Deixe o resto conosco. Nada de contexto e, sobretudo, nada de vacilar na retórica belicista de contra-ataque. Nos Estados Unidos, alguns estrategistas da política externa não perderam tempo: “Vem aí uma nova ordem de desordem” e “Se nada fizermos, a desordem instalar-se-á”. Claro está que nesta linha o presidente Joe Biden é um covarde e a sua liderança, ao se recusar a entrar no conflito, está a “liderar por detrás”.
Na Europa, o discurso é mais ou menos o mesmo – o momento é de pedir mais armas, mais orçamento de defesa, mais segurança. O projeto de integração política europeu, outrora bem fincado na ideia da política e do direito, sucumbe agora à ideia de que só o poder e a força contam. Num momento de aflição, é desesperante ver a União Europeia entregar-se a uma desenfreada corrida aos armamentos. Que tristeza.
E, no entanto, é preciso falar de paz. As escolhas que terão de ser feitas nos próximos dias serão muito difíceis e acredito que serão especialmente difíceis para os ucranianos. Um cessar-fogo que permitisse uma negociação mais leal parece ser impossível de alcançar. É certo que a neutralidade, que esteve na primeira linha da disputa, parece ser agora o ponto mais fácil de regular num qualquer plano de paz. Mas falta o resto, falta o território, falta a questão da Crimeia e a questão das duas províncias do Donbas. Falta a própria segurança da Ucrânia e, acredito, falta ainda a questão do prolongamento das sanções. No limite, o acordo de paz existirá quando ambas as partes concluírem que os custos da guerra são mais pesados que os sacrifícios que um acordo traria. Mas, do que não há dúvida, é que o preço da paz vai ser pesado. É por isso que falo da coragem da paz.
No Ocidente, nada se admite além da condenação da Rússia, sem contexto. Condene e cale-se
Por outro lado, o discurso ocidental sobre a guerra da Ucrânia parece também querer fazer cair no olvido todas as guerras de agressão dos últimos 20 anos. Robert Gates, que escreve no Washington Post, afirma que “a invasão da Ucrânia por Putin acabou com 30 anos de férias da América da história”. É muito difícil perceber quando é que os Estados Unidos tiraram férias da história quando lembramos o Iraque, o Afeganistão, a Líbia, a Síria e o Iêmen. As campanhas da guerra global contra o terror deixaram um rasto de destruição e de caos político em todo o Grande Médio Oriente – mais de 900 mil mortos, segundo os últimos números do “projeto de custos de guerra” da Universidade de Brown.
No ambiente político ocidental, qualquer referência de contexto a estas guerras é tomada como “relativismo moral” ou, pior, como justificação da agressão russa. Não, não é. Pela minha parte, condenei com igual veemência a guerra no Iraque como condenei a invasão da Ucrânia. O que me parece impossível de aceitar é a pretensa superioridade moral de quem apoiou a primeira e condena agora a segunda, impondo, desta vez, o silêncio sobre a primeira. Ambos os casos constituíram violações gravíssimas do direito internacional e em ambos os casos ficaram visíveis os limites do uso da força militar. As duas guerras não foram a continuação da política, mas o falhanço da política. O mesmo é valido para a questão dos refugiados. O exemplar comportamento dos países europeus no acolhimento dos refugiados ucranianos não fará esquecer o fracasso da crise de refugiados das guerras do Médio Oriente. Ao contrário, o contraste ficará mais nítido.
Finalmente, preocupa-me o discurso daqueles que parecem transformar esta tragédia numa oportunidade de regresso ao clima de Guerra Fria. Esta guerra deu-lhes o inimigo de que precisavam e o pretexto para o discurso da exclusão da Rússia da ordem internacional. As sanções, mais do que um instrumento de pressão para acabar com a guerra e obrigar a soluções diplomáticas, parecem caminhar nessa direção – exclusão do sistema financeiro mundial, exclusão do mundo da competição desportiva, exclusão do mundo tecnológico, exclusão do mundo digital. Este caminho acabará por corromper ainda mais a ideia de globalização, caminho esse que estava em movimento.
Não é que o projeto de globalização fosse isento de erros e imperfeições. Nunca foi um projeto perfeito de regulação justa, mas era uma ideia política que apelava à construção de um mundo baseado no direito e na cooperação entre os povos. O que podemos ver no horizonte é o duplo mundo formado por dois blocos – o do eixo Pequim-Moscou (com a Rússia porventura no desconfortável papel de parceiro júnior) e do outro lado o bloco político dos Estados Unidos aliado ao grupo dos países do G-7. Esta nova realidade terá como primeiras vítimas a agenda ambiental e o combate às alterações climáticas em particular. Um mundo de cooperação capaz de produzir bens públicos globais no domínio do comércio justo, no domínio do controle de armamentos e do combate aos fenômenos terroristas parece cada vez mais distante. Não, não acompanho o entusiasmo com que alguns falam dessa “nova ordem”. O que vejo nela é a nostalgia da velha ordem da Guerra Fria.
Voltemos ao início. Ninguém ganhará esta guerra. A Rússia vai pagar o preço dessa aventura militar na sua credibilidade como ator político na cena internacional. A Ucrânia pagará o preço que estamos a ver de destruição e caos. Ninguém sairá a ganhar. Depois da guerra, a Rússia continuará a existir e a Ucrânia também. E continuarão a ser vizinhos. O dever da comunidade internacional é facilitar a sua coexistência sem conflitos, não o contrário. Neste momento, coragem é lutar pela paz. •
*Ex-primeiro-ministro de Portugal.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1201 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A grandeza da paz “
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Um minuto, por favor…
O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.
Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.
Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.
Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.
Assine a edição semanal da revista;
Ou contribua, com o quanto puder.