Mundo
Beco sem saída
As eleições presidenciais tendem a aprofundar a divisão interna, não a amenizar
Há mais de um ano, a vida política venezuelana gira em torno das eleições presidenciais, marcadas para 28 de julho. Será a oitava e mais difícil disputa para o bolivarianismo, desde a consagração de Hugo Chávez nas urnas pela primeira vez, em 1998. Os sinais de desgaste da coalizão governista são claros.
As pesquisas de opinião apresentam números ao gosto do freguês. A sondagem do Instituto Insight aponta Nicolás Maduro muito perto de conquistar um terceiro mandato, impulsionado por 52,24% das intenções de voto. Bem abaixo, com magros 15,93%, aparece Edmundo Gonzáles, principal nome da oposição. Os indecisos representam 16% do total. Outros oito nomes na disputa exibem patamares que vão de 0,5% a 6%. O Instituto Meganalisis, por sua vez, coloca Gonzáles, candidato da Plataforma Unitária Democrática, com 32,4%, enquanto Maduro amarga míseros 11,2%. Aqui, os indecisos somam 39% e os que votarão em branco ou nulo chegam a 19%.
Os enfrentamentos eleitorais das últimas décadas foram marcados pela pouca sutileza com que o chavismo usou a máquina pública em seu favor e pela baixa tradição democrática oposicionista. Realizadas num momento de extrema tensão na seara internacional, com ascensão da extrema-direita no continente, a corrida rumo ao Palácio de Miraflores é também a expressão local de embates entre as grandes potências. Num contraste digno de manuais políticos, não é errado afirmar que uma derrota de Maduro, que desde a chegada ao poder buscou aproximar-se de Pequim e Moscou, representará uma vitória para Washington.
No comando de um país no qual os gráficos de desempenho econômico seguem a lógica de montanha-russa, o atual presidente mantém-se no poder há 11 anos com um misto de esperteza e truculência. De acordo com o FMI, o Produto Interno Bruto de 2023 foi de 102,3 bilhões de dólares, cerca de um sexto do PIB do estado de São Paulo. Depois de alcançar 372 bilhões em 2016, o indicador afundou até 44 bilhões em 2020. A inflação literalmente destruiu a moeda nacional ao bater 65 mil por cento em 2018. Diante dessa magnitude, os atuais 100% anuais aparentam indicar momentos de calmaria. Segundo a Agência da ONU para Refugiados, há mais de 7,7 milhões de venezuelanos fora do país, diante de uma população residente de 28 milhões.
Navegando em águas revoltas, Maduro tentou uma patriotada no segundo semestre de 2023 para galvanizar a opinião pública em seu favor. Colocou no centro da agenda nacional a reivindicação de uma área de 160 quilômetros quadrados, rica em petróleo e outros recursos naturais, localizada no interior da vizinha Guiana. A demanda remonta à confusa delimitação de fronteiras após o fim do domínio espanhol na região, há dois séculos. O antigo vice-reinado de Nova Granada fragmentou-se nos atuais Panamá, Colômbia, Equador e Venezuela, após breve tentativa de mantê-los unificados. Logo em seguida, Simón Bolívar acusou a Guiana, única colônia britânica da região, de se apossar de Essequibo, então pertencente à Venezuela. A controvérsia só seria resolvida em 1899, por um tribunal arbitral supostamente neutro, reunido em Paris. Era formado por Estados Unidos, Grã-Bretanha e Rússia, sem a presença de representantes de Caracas. De lá para cá, a exigência pela devolução do território uniu todas as forças do espectro político local.
Mais uma vez, o mundo olha com desconfiança para o processo eleitoral
Em dezembro passado, Maduro convocou um plebiscito, no qual 95% dos eleitores aprovaram a anexação do território. Cinco meses depois, o presidente sancionou uma lei que considera a região parte da Venezuela, numa artificial radicalização de posição. Se historicamente a demanda tem lógica, politicamente tumultua um cenário para lá de tenso. O caso guarda parentesco com a justa reivindicação da Argentina pelo arquipélago das Malvinas, ocupado pela mesma Grã-Bretanha desde 1840. Em 1982, em seus estertores, a ditadura local tentou apossar-se militarmente das ilhas, na velha tática de unir a nação contra um inimigo externo. Foi derrotada numa breve guerra que acelerou seu fim.
Os próximos passos do presidente venezuelano são uma incógnita. O país vive em grave crise econômica desde ao menos 2014, quando uma baixa histórica nos preços internacionais do petróleo levou o barril a desabar de 105 dólares no ano anterior para menos de 30. Detalhe: o produto representa em torno de 95% do valor anual das exportações. A produção caiu de 3,1 milhões de barris diários em 2010 para 367 mil dez anos depois, de acordo com a Opep. As condições de vida internas pioraram, com seguidas investidas dos governos de Barack Obama e Donald Trump. A Venezuela foi alvo de mais de 150 medidas de sanções econômicas emitidas pelos EUA, Canadá, União Europeia e Reino Unido.
A situação mudou a partir da deflagração da guerra na Ucrânia, em fevereiro de 2022. Um cerco econômico impediu a Rússia de comercializar seu petróleo e gás. Diante de restrições na oferta, os preços internacionais de energia explodiram.
Na busca por novos fornecedores, o Departamento do Tesouro dos EUA anunciou, em novembro de 2022, uma licença para o retorno das operações da Chevron, gigante do ramo energético, na Venezuela, suspendendo parte das sanções. Os dois governos acabaram por acertar a volta dos Estados Unidos como grande comprador do petróleo caribenho. A iniciativa permitiu uma rápida melhora econômica interna à Venezuela.
O passo seguinte envolveu negociação mais complexa. Em 17 de outubro do ano passado, governo e oposição sentaram à mesa e fecharam, em Barbados, uma série de acordos mediados pela Noruega e apoiados por vários países, entre eles o Brasil. Acertou-se a libertação de lideranças oposicionistas presas e a suspensão parcial de várias sanções impostas por Washington, a partir da combinação de que as eleições seriam livres, limpas e sem restrições para a oposição.
Uma confusa sucessão de acontecimentos implodiu, no entanto, os acordos. Em 26 de março, o principal nome da oposição, a engenheira e ex-deputada Maria Corina Machado não conseguiu registrar seu nome para as eleições, bem como o de sua substituta, Corina Yoris. Próxima ao ex-presidente George W. Bush, Machado foi acusada de receber dinheiro de entidades dos EUA para desenvolver ações golpistas na Venezuela. Em 26 de janeiro último, o Tribunal Supremo de Justiça havia cassado seus direitos políticos por 15 anos. A partir daí os Estados Unidos consideraram rompidos os acordos de Barbados e anunciaram o restabelecimento de sanções. Os governos do Brasil e da Colômbia criticaram o vizinho.
A campanha eleitoral segue tensa. Nas últimas semanas, a PUD, coalizão oposicionista, passou a denunciar tentativas de intimidação e prisões de seus ativistas por parte do governo. A menos de três meses do dia da votação, tudo indica que o tempo político até lá será longo e acidentado. •
*Professor de Relações Internacionais da UFABC.
Publicado na edição n° 1309 de CartaCapital, em 08 de maio de 2024.
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