Mundo
Banho de sangue
A espiral da barbárie no conflito entre Israel e o Hamas


Autorizado pelo Ocidente a revidar o brutal ataque do Hamas, Israel não se fez de rogado. Em resposta ao “11 de Setembro” israelense, conforme definição de Gilad Erdan, representante permanente do país na ONU, o ministro da Defesa, Yoav Gallant, determinou o “cerco total” à Faixa de Gaza, gueto onde vivem cerca de 2 milhões de palestinos. O fornecimento de eletricidade, água, gás e comida foi interrompido, enquanto os mísseis espalham, em grau e intensidade superlativos, a destruição no enclave. Só na terça-feira 10, a artilharia judaica pôs abaixo 200 alvos. “O Hamas cometeu um erro grave”, declarou Gallant. Após um breve período de indiferença e até desconfiança mútua nas relações, Washington voltou a reafirmar a aliança incondicional com Tel-Aviv. “Os Estados Unidos nunca deixarão de apoiar Israel”, declarou Joe Biden. “No meu governo, o apoio a Israel é sólido e inabalável”, acrescentou o presidente norte-americano, que anunciou o envio de um porta-aviões, navios e caças de combate para dar suporte às ações dos aliados preferenciais. A revanche, traduzida como “legítimo direito de defesa”, foi, nos últimos dias, a única moeda aceita na comunidade internacional. O resultado do olho por olho não poderia ser mais eloquente. Até o fechamento desta edição, na manhã da quarta-feira 11, o número de mortos havia alcançado a marca de 1,9 mil. Eram mil israelenses e 900 palestinos, além de cerca de 7 mil feridos de um lado e de outro.
“É o 11 de Setembro” israelense, afirmou o representante do país na ONU. O Ocidente avaliza a retaliação de Tel-Aviv
A brutalidade do conflito começou, porém, a produzir pequenas fissuras no consenso a respeito da legitimidade da reação israelense. António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, declarou-se “profundamente angustiado” com o cerco a Gaza e lembrou que os ataques do Hamas, por mais injustificáveis e bárbaros, não surgiram do vácuo, mas “de uma ocupação de décadas sem fim à vista”. Ministro interino das Relações Exteriores da Espanha, José Manuel Albares, expôs a fratura no continente ao defender a manutenção da ajuda humanitária aos territórios palestinos às vésperas da reunião da União Europeia convocada para discutir o assunto. “A cooperação deve continuar. Não podemos confundir o Hamas, que está na lista dos grupos terroristas da UE, com a população ou com a Autoridade Palestina”. A ONG Human Rights Watch definiu a suspensão do suprimento de itens essenciais à sobrevivência como “crime de guerra”.
Por ora, trata-se de tímidos e insignificantes apelos ao bom senso. Ao longo de 70 anos, Tel-Aviv quase sempre ignorou o que o Hemisfério Norte achava de suas incursões na vizinhança. Bastava o aval de Washington. Imagine agora. A barbárie do Hamas e as comemorações em parte do mundo árabe, em especial no Irã, acusado de financiar as ações terroristas, uniram o Ocidente na defesa da justificativa “moral” da contraofensiva de Israel, assim como os ataques às Torres Gêmeas em Nova York levaram os aliados a silenciar diante da “Guerra ao Terror” iniciada por George W. Bush, cujos resultados são hoje conhecidos – a desestruturação do Afeganistão e do Iraque e a radicalização extremista na região. O bombardeio de Gaza “apenas começou”, avisou na terça-feira 10 o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, antes de conclamar a união de governo e oposição na defesa da integridade dos judeus.
Mais de 300 mil reservistas foram colocados de prontidão pelo Exército israelense. Uma incursão na Faixa de Gaza seria arriscada – Imagem: Hazem Bader/AFP
Acossado pelos protestos populares contra a interferência no Poder Judiciário em benefício próprio e a aliança com a extrema-direita local, Netanyahu viu cair no colo uma causa capaz de unir o país. Internamente, tanto quanto no exterior, são raras as vozes que, neste momento, atribuem ao premier algum grau de culpa pelo conflito. Uma dessas vozes é o jornal Haaretz, que não tem poupado o chefe de governo desde os atentados. “O desastre que se abateu sobre Israel no feriado de Simchat Torá é da clara responsabilidade de uma pessoa: Benjamin Netanyahu”, diz o editorial do domingo 8. “O primeiro-ministro, que se orgulha da sua vasta experiência política e da sua sabedoria insubstituível em questões de segurança, falhou completamente na identificação dos perigos para os quais conduzia conscientemente Israel ao estabelecer um governo de anexação e desapropriação, ao nomear Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir a posições-chave, ao mesmo tempo que adotava uma política externa que ignorava abertamente a existência e os direitos dos palestinos.”
Editorial do Haaretz, influente jornal de Israel: “O desastre é da clara responsabilidade de uma pessoa: Benjamin Netanyahu”
Desta vez, como ressalta o Haaretz, não é preciso retroceder aos confins da história, ao big-bang do ódio transmitido de geração em geração, para entender a explosão da barbárie no atual conflito. Entender não é justificar, muito menos comemorar, à moda iraniana, o massacre aleatório iniciado pelo Hamas, a exibição de corpos das vítimas ou o uso de reféns como escudos humanos. É apenas a maneira prudente de driblar o maniqueísmo que tem caracterizado a geopolítica desde ao menos o início da Guerra da Ucrânia. Para escapar das acusações de corrupção, Netanyahu fez um pacto com o diabo. Ou, pior, com a extrema-direita israelense. A interferência na Justiça é o menor dos males. Em troca do apoio parlamentar, Netanyahu concordou em abraçar o programa radical dos neoaliados. A ultradireita aliada ao premier é a nêmesis dos grupos árabes que pretende combater: o extermínio do inimigo é a única “política” aceitável. Desde a formação da maioria parlamentar, no fim do ano passado, o governo israelense retomou a expansão dos colonos judeus na Cisjordânia, base de um projeto de anexação definitiva do território e uma das razões do esfriamento das relações com os Estados Unidos. Em junho, Anthony Blinken, secretário de Estado norte-americano, havia sido claro sobre os riscos da operação. “A expansão dos assentamentos apresenta um obstáculo ao horizonte de esperança que buscamos. Da mesma forma, qualquer movimento em direção à anexação da Cisjordânia, a ruptura do status quo histórico em locais sagrados, as demolições contínuas de casas e os despejos de famílias prejudicam as perspectivas de dois Estados. Elas também minam a dignidade diária básica a que todos têm direito.”
Duas faces da mesma moeda? Netanyahu aproveita a situação para desviar a atenção dos problemas do seu governo. Os iranianos comemoram os ataques a Israel – Imagem: Gabinete do Primeiro Ministro de Israel e Hossein Beris/Middle East/AFP
Netanyahu e seus ministros fizeram ouvidos moucos. Dois meses depois, em agosto, Ben-Gvir, ministro da Segurança Nacional, meteu-se em um bate-boca com a modelo Bella Hadid, de origem palestina, sobre o mesmo tema. “O meu direito, o direito da minha esposa, o direito dos meus filhos de viajar nas estradas da Judeia e Samaria é mais importante do que o direito de movimento dos árabes.” Considerada “racista e hedionda” pela Autoridade Palestina, a declaração gerou a seguinte resposta da modelo: “Em nenhum lugar, em nenhum momento, especialmente em 2023, uma vida deveria ser mais valiosa do que outra”. A reação de Ben-Gvir? Acusar Hadid de antissemitismo. Embora tenha falado sério, não deixa de ser irônico. O ministro foi condenado no passado por racismo e, antes de integrar o governo, exibia em casa a foto de um extremista judeu que matou 29 palestinos em uma mesquita.
A superioridade bélica e o apoio dos EUA não deixam dúvida sobre qual lado vai prevalecer. Resta contabilizar os custos. Em meros quatro dias, o atual conflito transformou-se no mais sangrento desde 2014. Os reféns levados pelo Hamas, o apoio armado dos libaneses do Hezbollah, que tem atacado posições israelenses ao norte, e o aparente financiamento do Irã tornam mais complexo o desfecho da batalha e suas repercussões globais. O aiatolá Ali Khamenei nega a participação na invasão, mas comemora. “Beijamos as mãos daqueles que planejaram o ataque ao regime sionista”, celebrou em um discurso transmitido pela tevê local. “As próprias ações do regime sionista são responsáveis por este desastre.”
O Irã nega participação no planejamento dos ataques do Hamas, mas comemora. “Beijamos as mãos” de quem agiu, afirmou o aiatolá Khamenei
Uma incursão terrestre israelense no alçapão de Gaza embute inúmeros riscos: baixas pesadas na tropa, morte de cidadãos capturados e uma violência descontrolada que poderia minar a solidariedade internacional. Segundo Abu Ubaida, porta-voz do Hamas, um refém será morto toda vez que os bombardeios de Israel destruírem alvos civis na região. Estima-se que os militantes da facção tenham capturado por volta de cem judeus. Tel-Aviv afirma, por sua vez, ter retomado o controle das fronteiras na segunda-feira 9 e recolhido 1,5 mil corpos de combatentes inimigos em seu território. Cerca de 300 mil reservistas foram convocados e permanecem de prontidão para o caso de nova escalada dos confrontos e de uma invasão a Gaza. A extrema-direita aproveita o episódio para equipar suas milícias. Ben-Gvir promete armar “massivamente” a população, principalmente na Cisjordânia ocupada. O ministro teria autorizado a compra imediata de 10 mil espingardas a serem distribuídas aos colonos. “Vamos virar o mundo de cabeça para baixo para que as cidades sejam protegidas”, afirmou, de acordo com relatos do Times of Israel.
“Só volto ao Brasil se não tiver opção”, diz Goust – Imagem: Acervo Pessoal
A escalada do conflito ameaça ainda um dos raros esforços diplomáticos de Israel, a aproximação com a Arábia Saudita, vital para a estabilidade no Oriente Médio e caminho, longo e tortuoso, para a solução dos dois Estados. Imbuído da “justa missão”, Netanyahu vira os olhos ao passado. O premier tem evocado a Guerra do Yom Kippur em busca de um “governo de emergência nacional, sem condições prévias”. Há 50 anos, exatamente como nestes dias, as forças de segurança e a inteligência de Israel foram pegas de surpresa por um ataque, à época liderado por Egito e Síria, em pleno feriado judaico. A batalha durou 20 dias e o avanço árabe só não logrou sucesso por conta da interferência direta dos Estados Unidos em prol de Tel-Aviv. Naquele momento, o país não era governado por um egoísta inconsequente, mas por Golda Meir, uma das fundadoras da nação e símbolo do Partido Trabalhista. O conflito selaria o pacto definitivo e umbilical entre israelenses e norte-americanos que garantiria aos primeiros superioridade militar incomparável na região e carta branca para impor seus interesses acima de qualquer reivindicação dos vizinhos ou acordo de paz. Mais: sem necessidade de prestar contas de seus atos ao resto do planeta. A truculência venceu em 1973. E volta a triunfar, cinco décadas depois. Os bárbaros dançam sobre os corpos dos inocentes. •
“A única certeza é de que haverá retaliação”
Não existe um plano de emergência, diz brasileiro na Cisjordânia
por René Ruschel
“Só volto ao Brasil se não tiver opção”, diz Goust – Imagem: Acervo Pessoal
O músico e antropólogo brasileiro Raffoul Goust mora há quatro anos em Ramallah, na Cisjordânia. A região, até então considerada uma violenta ocupação colonial de Israel em terras palestinas, transformou-se em um palco de guerra com final imprevisível. Goust está a menos de 80 quilômetros do epicentro desta batalha, a Faixa de Gaza, dominada pelo grupo Hamas, e pouco mais de 60 quilômetros da capital israelense. “Da janela do meu apartamento consigo avistar Tel-Aviv”. Em conversa com CartaCapital, o músico descreveu a vida da população neste momento, suas apreensões e temores. A seguir, o relato em primeira pessoa:
O ataque a Israel pegou todos de surpresa. Por aqui, a sensação é de incerteza e espanto, mas todos reconhecem a gravidade do momento. O que se observa é um clima de muita apreensão. Na Cisjordânia têm acontecido confrontos diários com as forças militares israelenses nos arredores das cidades e proximidades dos checkpoints, de Jenin a Ramallah. Os relatos de violência contra palestinos são frequentes, além da preocupação em relação aos colonos instalados nos assentamentos da região.
O exército israelense é responsável pela proteção dos colonos judeus na Cisjordânia. Após os ataques do Hamas, o número de soldados aumentou e deverá crescer ainda mais. Uma das iniciativas israelenses é justamente tentar suprimir qualquer tipo de levante. Agora, com o objetivo de sufocar o Hamas, a expectativa é de que o exército aumente significativamente sua presença na região. As ruas, estradas e os checkpoints são os locais mais vigiados.
Na noite do domingo 8, foram mortos dois palestinos em Qalandia, nos arredores de Ramallah, e outros dois em Nablus. Todos em confronto com as forças israelenses. A situação mais alarmante é, no entanto, na Faixa de Gaza. Segundo um balanço divulgado pela mídia palestina na segunda-feira 9, as forças de Israel haviam destruído mais de 1,2 mil residências, 13 edifícios, três escolas da ONU e três mesquitas. As estimativas apontavam cerca de 75 mil desabrigados.
Embora a população esteja unida em seus propósitos e no apoio à luta contra Israel, existe o descontentamento de uma parcela significativa da população com a Autoridade Palestina. Há até quem se refira à autoridade como uma espécie de “braço israelense” e a acusam, inclusive, de tentar impedir os levantes populares. Neste momento não há, porém, protestos nem manifestações contra o governo. A maioria da população permanece recolhida em suas casas, uma vez que não existem na Cisjordânia sirenes de alerta nem abrigos onde possam se proteger em caso de ataques. Não existe qualquer plano de emergência elaborado para o caso de um ataque. As famílias são apenas orientadas a estocar água, medicamentos e comida, enquanto torcem para que nada aconteça.
Nos dois primeiros dias do ataque, sábado e domingo, as ruas ficaram praticamente desertas. Na segunda-feira houve uma pequena movimentação com alguns serviços voltando a operar ao menos por algumas horas. Fui aconselhado a não lecionar no conservatório no fim de semana, mas hoje (segunda) retornamos. Durante as aulas foram ouvidos, no entanto, barulhos de explosões, bombas e ruídos de aviões. Tivemos de procurar locais seguros. A dúvida agora é se as sanções adotadas pelo governo de Israel à Faixa de Gaza, como controle de combustível, gás, água, alimentos e medicamentos, também se estenderão à Cisjordânia. A única certeza é de que haverá retaliações. Não posso avaliar a intensidade, a dimensão, mas certamente sofreremos consequências.
Os sentimentos comuns da população são de apoio aos avanços em território israelense e o descontentamento com o tratamento midiático mundial, que classifica o Hamas e, por extensão, os palestinos, como terroristas. A imprensa internacional em sua quase totalidade tem desconsiderado estas ações como uma resposta às agressões sofridas há décadas pela ocupação sionista. Essa violência é fruto de uma luta histórica que se arrasta há 75 anos, sem que tenha havido vontade política para resolvê-la.
Apesar do medo, não pretendo voltar ao Brasil. Seguirei em minhas funções como pesquisador, antropólogo e professor. Torço para que as autoridades encontrem um desfecho justo, com o menor número de vidas perdidas. O Itamaraty tem negociado a retirada de brasileiros da Faixa de Gaza, mas o resgate não chegou à Cisjordânia, embora tenha sido informalmente cogitado pelo embaixador em Ramallah. Quero continuar na Palestina, a não ser que a situação se agrave de tal forma que minha permanência não seja mais uma questão de opção, mas de sobrevivência, de vida ou morte.
Publicado na edição n° 1281 de CartaCapital, em 18 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Banho de sangue’
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