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As 220 estudantes foram escravizadas pelo Boko Haram

Mas a imprensa liberal guarda silêncio, temendo “demonizar” o ato dessa manifestação indígena. Por Nick Cohen, do Observer

Seun Anikulapo Kuti, importante artista nigeriano, lidera protesto em Lagos que pedia ações mais efetivas para resgatar as meninas sequestradas
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Por Nick Cohen

Terroristas de um culto religioso tão reacionário que não é exagero descrevê-lo como fascista atacam uma escola. O atentado a um alvo civil, cheio de crianças não combatentes, tem como fundo uma lógica grotesca. Eles se chamam Boko Haram, que significa “a educação ocidental é proibida”. A seita considera o aprendizado uma opressão. Seus integrantes vão impedir todo ensinamento que entre em conflito com um livro sagrado do século VII e relatos de proveniência duvidosa sobre a vida e ditados de seu profeta escritos centenas de anos depois de sua morte.

Um desejo de supremacia sexual acompanha seu ódio ao conhecimento. Eles tomam 220 estudantes como escravas e as obrigam a converter-se a sua versão do islamismo. Eles as violentam ou as vendem por 10 libras para novos donos. As garotas são vítimas da escravidão, do abuso infantil e do casamento forçado. Seus captores são, por extensão, escravagistas e estupradores.

Como se pode ver, não faltam palavras nas línguas ocidentais para descrever a imoralidade dos crimes cometidos na Nigéria, e sem dúvida elas seriam usadas no caso altamente improvável de que soldados ocidentais capturassem e vendessem mulheres.

Mas leia alguns órgãos da imprensa e você entrará em um mundo de eufemismos. Elas não foram escravizadas, mas “abduzidas” ou “sequestradas”, como se fossem ser libertadas ilesas quando as partes negociarem um resgate mutuamente aceitável. Os redatores estão digitando com um olho voltado para trás para garantir que ninguém os possa acusar de “demonizar o outro”.

Passe dos jornais de hoje para as páginas teóricas de publicações de esquerda e você descobrirá que as bases para compreender o Boko Haram e não o condenar foram preparadas no ano passado.

Sem apoiar plenamente o Boko Haram, é claro, os socialistas explicaram que ele encontra “ressonância nos corações de muitas pessoas pobres e despossuídas”, que se revoltam com a “corrupção e o estilo de vida flamejante das elites”. O islamismo é reformulado como uma reação racional à corrupção local e à opressão global do “neoliberalismo”, um desses rótulos convenientemente vagos que podem significar quase qualquer coisa.

Outrora, os jornais de direita ou autores ultracatólicos ou judeus ortodoxos teriam sido os menos preocupados com a subjugação de mulheres e os mais dispostos a encontrar desculpas para a perseguição religiosa. Mas, com a confiabilidade de um relógio falante, são os redatores de esquerda do século XXI que buscam minimizar a reação violenta, se – e somente se – os reacionários forem antiocidentais. (Eles denunciam os crimes menores da direita religiosa dos Estados Unidos, sem levar em conta seus próprios critérios duplos.)

“A denúncia mecânica do Ocidente”, escreveu o teórico político francês Pascal Bruckner em 2010, “proíbe o bloco ocidental, que é eternamente culpado, de julgar ou combater outros sistemas, outros Estados, outras religiões. Nossos antigos crimes exigem que mantenhamos nossas bocas fechadas.” Ele poderia ter escrito hoje, de tão persistente é sua crença em que o Ocidente é a origem da única opressão digna de se mencionar.

Mas a aparência de que nada mudou é ilusória. Sempre foi absurdo, e de certa maneira racista, atribuir os problemas do mundo ao “Ocidente”. Os esquerdistas passaram a se parecer com os neoconservadores americanos. A direita dos EUA, ou parte dela, pensou que o poderio militar americano poderia solucionar qualquer problema. A esquerda, ou parte dela, falou como se o Ocidente fosse responsável por todos os males. Ambas estavam auto-obcecadas. Ambas acreditavam que o Ocidente ainda era o motor da história, enquanto o resto da humanidade era formado por atores secundários.

A ofensa mais lamentável foi o fracasso da solidariedade. Você não pode se aliar com as forças liberais e de esquerda existentes em qualquer país, do Afeganistão ao Zimbábue, se você atribuir sua opressão ao colonialismo, neoliberalismo ou qualquer outro “ismo” que esteja zumbido em sua cabeça. Você acabará desculpando os inimigos de seus camaradas.

Se o ocidentalismo foi absurdo no passado, hoje é irracional. O Boko Haram não está reagindo à intervenção ocidental na Nigéria, pois ela não existe. A única maneira de se fingir que o Ocidente é o culpado é concordar que o conhecimento é “conhecimento ocidental”, em vez da propriedade de toda a raça humana, e que a educação das meninas é “imperialismo cultural ocidental” – uma estrada que o leva ao niilismo assim que você começa a caminhar.

Enquanto isso, estamos nos movendo mais depressa do que se esperaria para uma nova era em que a China será a maior economia do mundo. Pela primeira vez desde o século XVIII, a potência dominante não permitirá a oposição interna ou o equivalente chinês das campanhas a favor das vítimas de sua política externa que vimos na Grã-Bretanha, França e EUA nos últimos 200 anos. Nem sequer começamos a compreender a virada para pior que a causa dos direitos humanos globais está dando enquanto os impérios mudam.

Nas poucas ocasiões em que os esquerdistas ocidentais sentem que precisam se justificar, eles dizem que devem dedicar suas energias a contestar o que podem mudar. Eles não podem influenciar os taleban ou o Boko Haram, mas podem fazer lobby contra seus próprios governos. Mesmo que você tome essas explicações por seu valor de face – eu não tomo – elas passam uma sensação conservadora. Até recentemente, eram os conservadores, e não os esquerdistas, que diziam que “a caridade começa em casa”, e que brigas em países distantes não eram problema nosso.

Peter Singer, um grande filósofo radical, deixou clara a antiga distinção com um experimento de pensamento. Imagine que você está passando por um lago raso e vê uma criança se afogando. Você sabe que se salvar a criança vai estragar suas roupas. Deveria entrar no lago? É claro que sim, todos respondem: “Seria obsceno colocar seu desejo de economizar 50 libras em uma nova roupa antes da vida de uma criança”.

Por que então, pergunta Singer, você não dá o dinheiro que pode poupar para salvar a vida de uma criança na África?

A maioria dos conservadores diz que a morte de crianças que eles não conhecem não é seu problema. Os esquerdistas, e mais uma vez admito que estou generalizando, se revoltam contra tal paroquialismo. Mas quando se trata de violência contra civis e, mais notadamente, a negação dos direitos das mulheres, eles mudam a conversa para qualquer coisa, exceto os atos criminosos cometidos diante deles. A menina pode se afogar, ou ser escravizada e estuprada. Eles têm preocupações mais importantes.

Leia mais em Guardian.co.uk

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