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Ambiguidade embaraçosa

Os parceiros ocidentais cobram uma postura mais assertiva de Olaf Scholz em relação à crise na Ucrânia

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Ambiguidade embaraçosa
Pisar em ovos. Scholz enviou capacetes à Ucrânia e virou piada. Os aliados do Ocidente pedem armas – Imagem: Stefania Loos/AFP e Sergey Bobok/AFP
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Quando o novo chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, fechou um acordo de coalizão com seus parceiros liberais-verdes no mês passado, eles prometeram energicamente “se arriscar a ter mais progresso”. Menos de dois meses depois, os aliados de Berlim em Kiev, Washington e nas capitais europeias vizinhas se preocupam, porém, que o país continue preso a antigos hábitos passivos. Enquanto cresce a tensão na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia, eles temem que Scholz retome os instintos em política externa cultivados por seu mais recente antecessor de centro-esquerda, o ex-chanceler Gerhard Schröder, hoje um lobista.

A atitude restritiva à exportação de armas é uma fonte de frustração. Apesar de ser um dos cinco maiores exportadores de armas do mundo, a Alemanha diz que não pode enviar armas letais a zonas de conflito por razões históricas, e em vez disso forneceu à Ucrânia 5 mil capacetes militares, gesto que o prefeito de Kiev descreveu como “uma piada”. O país ainda não assinou a documentação que permitirá que a Estônia dê à Ucrânia nove canhões D-30, o que o chanceler precisa autorizar porque as armas de longo alcance feitas pela União Soviética estiveram estacionadas na Alemanha Oriental.

Para os críticos alemães, nada simboliza mais a sua ambiguidade em relação ao conflito em fermentação do que o Nord Stream 2, gasoduto ­recém-concluído, mas ainda não aprovado entre ­Ust-Luga, na Rússia, e Lubmin, no nordeste da Alemanha. Segundo eles, isso mostra como as necessidades energéticas do país o tornaram vulnerável à chantagem de Putin. Scholz insiste que “todas as opções estão sobre a mesa” quanto a potenciais sanções no caso de uma incursão russa na Ucrânia, mas seu governo demorou a entrar em detalhes, chegando a afirmar que é estrategicamente mais inteligente parecer vago. “Não devemos descartar nada quando se trata de sanções, incluindo o sistema global de pagamentos bancários Swift e o Nord Stream 2”, disse Nils ­Schmid, porta-voz de política externa do partido de Scholz, o Social-Democrata (SPD), de centro-esquerda. “Se a coisa apertar, o Nord Stream 2, provavelmente, se tornará insustentável. É crucial que Putin não possa calcular antecipadamente quais serão as consequências de seus atos.”

A lógica dessa posição não é questionada apenas no exterior, mas também internamente. “Ameaçar sanções não funciona se o outro lado perceber que você tem medo de explicar quais são elas”, disse ­Norbert Röttgen, integrante da comissão de Política Externa no Bundestag (Parlamento) da União Democrata-Cristã (CDU), conservadora. “Precisa ficar claro que autorizar o Nord Stream 2 está fora de questão, se houver uma guerra.”

A Alemanha é dependente do fornecimento de gás da Rússia

Os social-democratas de Scholz se reunirão para um debate interno sobre o seu posicionamento em relação à Rússia, e Röttgen pediu que o partido assuma uma posição contra aqueles que usam a história da Alemanha como cobertura para “ganho financeiro pessoal e uma política de acomodação que transforma os agressores em vítimas”. A ideia de que a Alemanha, cujas incursões militares na era nazista custaram milhões de vidas russas, não pode agir tão agressivamente em relação ao ­Kremlin quanto outros países europeus, pois não é uma visão minoritária. Ela permeia o espectro partidário alemão e é amplamente compartilhada pela população. Entretanto, Schmid, do SPD, diz: “Vocês precisam levar em consideração que a Alemanha, juntamente com a França, tem o papel de mediador entre a Rússia e a Ucrânia no formato Normandia (grupo de contato quádruplo criado após o conflito em Donbas). Não podemos fornecer armas para uma das partes entre as quais somos mediadores”.

Até o Partido Verde, anunciado por alguns como falcão dos direitos humanos que modificaria radicalmente a posição da Alemanha em relação à China e à Rússia, depois de reivindicar o Ministério das Relações Exteriores no novo governo, confirma essa posição. “O governo alemão não enviou qualquer carregamento de armas à Ucrânia durante quase uma década”, disse Agnieszka Brugger, deputada verde e integrante da Comissão Parlamentar de Defesa. “Uma mudança na política não faria qualquer diferença militar em curto prazo no solo, mas pode ser um grande risco para as muito difíceis negociações diplomáticas em curso. A união da Europa e da Otan em nosso apoio à Ucrânia é crucial para marcar uma posição forte em relação à Rússia, e não devemos deixar que as diferentes maneiras de como demonstramos apoio aos nossos aliados nos prejudiquem.”

Nenhum partido no Bundestag usou, porém, tanto os crimes históricos da Alemanha como cobertura para expandir laços com a Rússia quanto o de Scholz. Como partido mais antigo da Alemanha, o SPD tende a recorrer aos livros de história e poucos de seus líderes falam sobre a Rússia sem citar a Ostpolitik, estratégia de política externa de “mudança por meio de aproximação”, em direção à União Soviética e seus países-satélites seguida por seu ex-chanceler Willy Brandt.

Mas a atitude do SPD para com a Rússia não vai necessariamente tão fundo quanto ele gosta de acreditar. Em um artigo para o jornal Frankfurter Allgemeine, o historiador Gerd Koenen afirmou que uma política externa de “equidistância latente entre Washington e Moscou” teve origem na experiência de centro-esquerda no início do milênio, quando um governo alemão liderado pelo SPD se recusou a participar da guerra dos Estados Unidos no Iraque. Esse período no poder resultou na divisão do SPD sobre a política interna, com o chanceler Schröder a perseguir uma terceira via neotrabalhista, enquanto o ministro da Economia, Oskar Lafontaine, se desligava para cofundar o Die Linke (A Esquerda).

Schröder, que na sexta-feira 28 insistiu que a Rússia não tinha intenção de invadir a Ucrânia e acusou Kiev de “belicismo”, entrou para o Gasoduto Norte-Europeu, da gigante estatal russa Gazprom, depois renomeado Nord Stream AG, como presidente meses depois de perder a eleição em 2005. O gasoduto no Mar Báltico, entre a Rússia e o nordeste da Alemanha, que contorna o Báltico e a Europa Central e do Leste, recebeu aprovação no período interino antes de ­Angela Merkel assumir o poder, mas continuou sob seu governo. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1194 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Ambiguidade embaraçosa”

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