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Criptomoedas financiam a extrema-direita pelo mundo e podem abastecer campanhas de desinformação

Os entusiastas das bitcoins têm uma filosofia política ancorada na ideia de que não existe sociedade, apenas indivíduos que se relacionam. Qualquer forma de precedência da sociedade em relação ao indivíduo é vista como tirânica

Fora do sistema. Os manifestantes antivacina do “Comboio da Liberdade“ e os invasores do Capitólio receberam vultosas doações anônimas em criptomoeadas - Imagem: Dave Chan/AFP e Tasos Katopodis/Getty Images/AFP
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Há pouco mais de um ano, o mundo acompanhou atônito o assalto ao Capitólio por uma horda de fanáticos apoiadores de Donald Trump. Instigada pelo então presidente, a turba perseguiu parlamentares e o vice-presidente Mike Pence, na desesperada tentativa de reverter o resultado das eleições nos EUA. A invasão da sede do Parlamento resultou em cinco mortes, 140 policiais feridos, mais de 700 prisões e estragos materiais estimados em 1,4 milhão de dólares. Um comitê federal buscou identificar os responsáveis pelo ato.

Alguns manifestantes estavam ali espontaneamente, convencidos de que cumpriam o seu dever cívico após meses de exposição a fake news. Outros faziam parte de grupos de extrema-direita, antidemocráticos e bem organizados, com diversas fontes de recursos, incluindo vultosas doações em criptomoedas, uma espécie de dinheiro virtual, sem lastro assegurado por governos. Um mês antes do ato, 22 líderes do movimento receberam uma generosa doação de 28 bitcoins, avaliadas em 500 mil dólares à época, de um radical programador francês, revelou a empresa de análise de dados Chainalysis.

Mais recentemente, as criptomoedas estiveram por trás de outra demonstração de força de grupos de extrema-direita, o “Comboio da Liberdade”. Um protesto de caminhoneiros canadenses tomou proporções gigantescas, com centenas de veículos bloqueando estradas, pontes e vias expressas para protestar contra a obrigatoriedade das vacinas e outras restrições impostas para controlar a disseminação da variante Ômicron. Os caminhões travaram a rodovia entre ­Windsor­ e Detroit, vital para a indústria automobilística, e cercaram a capital Ottawa, criando problemas de abastecimento.

Grupos radicais de direita rapidamente abraçaram o movimento antivacina, aglutinando pautas xenofóbicas e racistas. Quando os métodos convencionais de doação coletiva, a exemplo do GoFundMe, expulsaram os ativistas de suas plataformas, um site chamado “Bitcoins For Truckers” foi criado. Por meio dele, extremistas de diferentes países doaram aos organizadores o equivalente a 1 milhão de dólares em criptomoedas, mais de 13% do total recebido pelos caminhoneiros até 14 de fevereiro. Um terço das doações em moedas virtuais ocorreu de forma anônima, dificultando as ações para sufocar o comboio. “As criptomoedas são o futuro”, celebraram os manifestantes nas redes sociais.

O fenômeno desperta preocupação no Brasil. Nos três primeiros anos do governo Bolsonaro, o número de grupos extremistas cresceu 270% no País, revela um estudo de Adriana Dias, doutora em Antropologia Social pela Unicamp. Ao todo, existem 530 células neonazistas em atividade, a reunir cerca de 10 mil militantes. Muito antes de ocupar o Palácio do Planalto, o ex-capitão contava com o apoio de vários desses grupos, que chegaram a organizar atos públicos em desagravo ao então deputado, quando este era denunciado por declarações racistas ou homofóbicas. “Como os neonazistas não podem organizar uma vaquinha nas plataformas de financiamento coletivo, até porque atuam na clandestinidade, eles veem nas criptomoedas uma forma de sobreviver. E o governo não tem interesse de criar uma regulação, pois esses grupos o apoiam”, observa David Nemer, professor de Estudos Latino-Americanos e Estudos de Mídia na University of Virginia (EUA).

Após o bloqueio de contas, caminhoneiros canadenses captaram 1 milhão de dólares em moedas digitais

O especialista observa que o bolsonarismo serve como um guarda-chuva em que diversas manifestações da extrema-direita se veem representadas, não apenas os neonazistas, mas também os ­incels (celibatários involuntários), os Homens Santos, os ciberlibertários e neoconservadores. Em breve, prevê Nemer, “as criptomoedas serão a principal fonte de sustento desses grupos”. Com a proximidade das eleições, o tema ganha especial relevância, diante da possibilidade de as moedas virtuais facilitarem o financiamento de campanhas de desinformação.

Por enquanto, os radicais brasileiros ainda priorizam métodos convencionais, como o PayPal, o PagSeguro e sites como BuyMeACoffee e de “vaquinha” virtual. O Superchat, ferramenta do YouTube, também é largamente utilizado por esses grupos para arrecadar fundos com seus apoiadores. Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo, recebeu doações e pagamentos de seus cursos online através da plataforma PagSeguro até poucos meses antes de sua morte. Alguns notórios propagandistas de fake news já perceberam, porém, a importância de diversificar as fontes e entrar no mercado de criptomoedas.

É o caso de Allan dos Santos, criador do canal Terça Livre, hoje foragido nos EUA. Há alguns meses, ele teve contas bancárias bloqueadas e perfis nas redes sociais removidos por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que também decretou a sua prisão preventiva. Restou a Allan o Telegram, aplicativo russo de mensagens fora da jurisdição brasileira. Na plataforma, Allan faz propaganda de seus canais para receber doações em criptoativos e, assim, dificultar novos bloqueios pelo STF.

Além do uso de moedas digitais como forma de financiamento, a invasão do Capitólio e o Comboio da Liberdade canadense têm outra característica em comum: seus entusiastas enxergam o Estado como um adversário disposto a roubar a liberdade dos cidadãos. No livro The Politics of Bitcoin: Software as Right-Wing Extremism, David Golumbia, professor da Virginia Commonwealth University, observa que os defensores mais inflamados das criptomoedas preferem aceitar, “mesmo sem perceber”, a definição feita por grupos da extrema-direita e pelos ultralibertários ou anarcocapitalistas “de que o governo não é a solução dos nossos problemas; o governo é o problema”.

Para o sociólogo Edemilson Paraná, professor da Universidade Federal do Ceará, isso acontece porque os entusiastas das bitcoins têm uma filosofia política ancorada na ideia de que não existe sociedade, apenas indivíduos que se relacionam. “A relação entre os conservadores, antivacinas, conspiracionistas e entusiastas de ­bitcoins é muito menos artificial do que parece. É uma relação baseada numa visão de mundo antissocial, na qual qualquer forma de precedência da sociedade em relação ao indivíduo é vista como tirânica.”

Esperteza. Para driblar os bloqueios impostos pelo STF, Allan dos Santos passou a pedir doações em bitcoins – Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress e Andressa Anholete/Getty Images/AFP

No fundo, acrescenta Golumbia, todo o ideário dos extremistas de direita “está baseado na contínua negação da possibilidade de as pessoas agirem de forma desinteressada”. Não por acaso, eles acreditam que a internet deve ser um espaço totalmente livre de interferência estatal. Nesse sentido, uma moeda baseada no espaço digital, sem o aval de uma agência reguladora, controlada por algoritmos com registros descentralizados, atende perfeitamente a estes anseios, embora ela também apresente as suas contradições.

Golumbia aponta especificamente para as ideias contrárias ao sistema bancário e ao sistema monetário, que estariam prestes a entrar em colapso. Os defensores das criptomoedas acreditam que a inflação é um mecanismo que rouba dinheiro dos indivíduos para entregá-lo a uma cabala sinistra que age nos bastidores, e secretamente controla o governo. Como se nota, em muitos aspectos os entusiastas das criptomoedas aproximam-se dos conspiracionistas do QAnon, cujos seguidores acreditam que a cúpula do governo norte-americano e do Partido Democrata é composta de predadores pedófilos.

A semelhança mais gritante entre os grupos é, porém, a forma como ambos mudam o significado de palavras para inviabilizar discussões, diz Golumbia. “Quanto mais você insiste, mais eles resistem.” Um bom exemplo é o uso do termo “inflação” pelos defensores das moedas virtuais. Quando se trata do governo, a inflação significa um aumento de preços, estimulado pela injeção de moedas no mercado ou alterações na oferta e na demanda que pressionam o valor dos bens e serviços. Quando o debate é trazido para uma criptomoeda, que custava cerca de 3,3 mil reais há cinco anos e passou a valer mais de 227,7 mil em fevereiro de 2022, os operadores dizem que estas são imunes aos efeitos inflacionários, pois não tiveram aumento significativo de volume. “A incrível dissonância cognitiva na qual (os conspiracionistas) vivem lembra muito como é conversar com o pessoal do Bitcoin.”

Os operadores asseguram que o mercado de criptomoedas é confiável e transparente. Graças à tecnologia do blockchain, os registros de todas as transações financeiras ficam disponíveis para cada usuário do sistema. Apesar disso, uma criptografia avançada supostamente garante plena segurança nas operações e o anonimato. “Quando a gente diz que o blockchain é transparente, é porque a gente consegue saber que saiu algo de ‘A’ para ‘B’. O que a gente não consegue saber é quem é ‘A’ e quem é ‘B’”, afirma Bernardo Srur, diretor da Associação Brasileira de Criptomoedas (ABCripto). Embora o anonimato seja preservado, isso não significa que as transações não possam ser rastreadas. É possível saber quem são os donos das carteiras virtuais que guardam as bitcoins, graças ao monitoramento feito por agências internacionais, como a Chainalysis. Por isso, sustenta Srur, usar criptomoedas para atividades ilegais é uma péssima ideia.

Há, porém, uma quantidade insuperável de evidências do contrário. Desde a sua criação, a promessa de anonimato atrai para o mercado de criptomoedas pessoas interessadas em lavar dinheiro proveniente do crime organizado, da corrupção e dos chamados crimes do colarinho-branco. A maior base de dados gratuita sobre o uso ilegal de criptomoedas, a ­Bitcoin Abuse Database, registrou mais de 102 mil denúncias comprovadas de fraudes, ransomware (tipo de malware que sequestra dados do computador da vítima e cobra um valor monetário pelo resgate) e outros crimes em 2020. De acordo com a Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais, não há como estimar o número de crimes praticados com criptomoedas no Brasil, uma vez que qualquer tentativa certamente chegaria a um número muito inferior à realidade.

As criptomoedas podem abastecer as campanhas de desinformação nas eleições brasileiras

Para a ACPF, o ambiente das criptomoedas só não atrai mais criminosos por falta de conhecimento técnico e pelo receio que os próprios bandidos sentem de sofrerem algum golpe de hackers, mas o principal atrativo certamente é a anonimidade. O emprego de truques do mundo analógico, como o uso de laranjas, de documentação fraudulenta e o envio de fundos para paraísos fiscais, torna as transações ainda menos transparentes.

Um lado ainda mais opaco desse mercado é a utilização das criptomoedas para financiar grupos terroristas. Em 2020, o governo dos EUA confiscou cerca de 2 milhões de dólares em carteiras virtuais de criptomoedas usadas para coletar doações destinadas ao Estado Islâmico, à ­Al-Qaeda e às Brigadas Al-Qassam, o braço armado do grupo palestino Hamas. À época, o FBI disse que os terroristas subestimaram a capacidade das agências de segurança e inteligência de rastrear as transações.

Um trabalho do Southern Poverty Law Center, uma das principais instituições de estudo sobre grupos extremistas ­norte-americanos, encontrou evidências de que ao menos 102 grupos e líderes extremistas possuem canais para receber doações em criptomoedas. Muitos deles investem em bitcoins desde o primeiro pico de valorização, entre 2012 e 2013. Ou seja, podem ter acumulado milhões de dólares com criptoativos na última década. Um deles é Nick Fuentes, líder do chamado Groyper Army. Nacionalista e supremacista branco, Fuentes recebeu uma doação de 250 mil dólares em criptomoedas de um radical francês e está sendo investigado por usar seus recursos para organizar o ato que levou à invasão do Capitólio.

No Canadá, o governo Trudeau decretou estado de emergência, dando poderes às instituições financeiras para congelar contas usadas no financiamento do combio sem autorização judicial, o que deixou a comunidade anarcocapitalista do ­Twitter em pânico e reforçou os pedidos dos organizadores para que as doações fossem feitas em criptomoedas. Benjamin Ditcher, um dos líderes dos atos, disse que ficou “chocado com quão rápido ele começou a receber mensagens de apoio dos principais bitcoiners do mundo”. Unidos na repulsa ao Estado, os extremistas de direita e os entusiastas das moedas virtuais caminham de mãos dadas. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1197 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Fúria antiestatal”

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