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Bloqueios de caminhoneiros antivacina no Canadá desencadeiam ações em todo o mundo

O protesto mistura queixas e temores genuínos com teorias conspiratórias e radicalismo racial

Efeito manada. Os “comboios da liberdade“ rapidamente se dissemiram para outros países, como a França – Imagem: Thomas Coex/AFP e Geoff Robins/AFP
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Bastaram 70 caminhões e algumas centenas de manifestantes para levar a capital do Canadá a um impasse e fechar uma passagem de fronteira crítica com os EUA, sufocando a indústria de automóveis que funciona entre os dois países e depende de um fluxo de comércio constante. No sábado 12, as autoridades canadenses finalmente começaram a tomar medidas para liberar a Ponte Ambassador, a mais movimentada travessia terrestre da América do Norte, que tinha sido bloqueada por uma dúzia de caminhões e veículos menores e poucas centenas de manifestantes.

A ponte esteve fechada na maior parte da semana, enquanto o centro de ­Ottawa ficou sob uma espécie de sítio durante mais de duas semanas, bloqueada por multidões reunidas sob a bandeira da oposição às regras sobre a Covid. O protesto misturou queixas genuínas sobre os danos causados pela pandemia com teorias da conspiração e radicalismo racial. Um punhado de manifestantes apareceu com faixas de Donald Trump e bandeiras dos estados confederados.

O chamado sedutor para um “comboio da liberdade” provocou um improvável movimento global. Em vários paí­ses, as forças policiais atuaram para dispersar ou impedir atos semelhantes. Na Nova Zelândia, o presidente do Parlamento, Trevor Mallard, usou um sistema de som tocando canções de Barry Manilow para atacar um protesto em Wellington. Na França, milhares de policiais se espalharam por cabines de pedágio ao redor de Paris para impedir que um comboio chegasse à cidade, e usaram gás lacrimogêneo contra manifestantes na Avenida Champs-Elysées.

“O direito à manifestação e à liberdade de opinião é garantido pela Constituição em nossa República e em nossa democracia, mas o direito de bloquear outras pessoas e impedir que elas vão e venham não é”, disse o primeiro-ministro Jean ­Castex. “Se eles bloquearem o tráfego ou tentarem bloquear a capital, seremos muito rígidos”, ameaçou.

O protesto mistura queixas e temores genuínos com teorias conspiratórias e radicalismo racial

Na América do Norte, as autoridades estão traçando planos de longo prazo para lidar com os comboios de caminhões, cujos organizadores aventaram a ideia de tentar impedir eventos como o festival de música Coachella e até o Super Bowl, e discutiram a formação de um comboio da Califórnia até a capital, Washington, D.C.

O protesto no centro de Ottawa pode ser mais difícil de desmontar, e as ondas de choque das últimas duas semanas podem ser mais difíceis ainda para a classe política do país se livrar. Os manifestantes são uma pequena minoria em um ­país que, em geral, apoiou a proteção contra a Covid oferecida pela ciência. O Canadá tem um dos mais altos índices de vacinação completa do mundo, com mais de 80% da população coberta.

Os caminhoneiros são uma minoria em sua profissão. O sindicato Teamsters Canada, que representa 15 mil motoristas, denunciou “demonstrações de ódio lamentáveis” nos atos, que, segundo ele, não representa “a vasta maioria de nossos membros”. Mas os caminhões formam um obstáculo muito mais difícil de remover das ruas congeladas do que as multidões de manifestantes individuais ou veículos menores que a polícia enfrentou antes. Um estado de emergência foi declarado e moradores moveram um processo legal contra os manifestantes.

A polícia tenta sufocar o grupo mantendo suprimentos de comida e combustível fora da zona principal do protesto. Um banco congelou seus fundos e dois sites, o GoFundMe e o GiveSendGo, fecharam sua coleta de dinheiro. Mas vários manifestantes disseram ao Observer que os direitos que eles estão defendendo valem qualquer golpe financeiro.

Missionários. Alguns manifestantes acreditam estar numa “missão heroica“ – Imagem: Pierre Crom/Getty Images/AFP

Rebecca, que não quis revelar seu sobrenome, mora perto dos protestos e adere a eles regularmente. Ela está em licença não remunerada de seu emprego no governo há meses, depois que seu pedido de isenção da vacina por motivos religiosos foi negado. “Sou ativista dos direitos humanos. Não acho que as vacinas devam ser obrigatórias para as pessoas conservarem o emprego. Esse é o motivo principal pelo qual estou aqui.”

Esse sentido de missão heroica, alimentado por grupos conspiracionistas como a QAnon, pode tornar esses protestos muito mais difíceis de terminar do que manifestações por demandas políticas específicas. “(Eles acham) que estão aqui para salvar vocês, tornaram-se heróis em sua própria história”, observa Amarnath Amarasingam, professor associado na Universidade da Rainha em Ontário, especializado em movimentos sociais e extremismos. “Não acho que seja um desafio por motivos de segurança, de ameaça terrorista. Mas tem impacto sobre quanto tempo vai durar, porque não é simplesmente algo que você possa negociar e dizer ‘está bem, a obrigatoriedade vai acabar, já podem ir para casa’.”

A natureza dos protestos impôs um desafio político inédito às autoridades, segundo Scot Wortley, professor de criminologia na Universidade de Toronto. “Talvez a coisa mais próxima que tivemos disso seja o levante de 6 de janeiro nos EUA”. A insurreição em ­Washington é um lembrete de como as teorias da conspiração na internet podem irromper na realidade política da corrente dominante e modificá-la permanentemente. Lá, assim como no movimento de protesto canadense, a multidão incluía defensores do QAnon. Nos primeiros dias do protesto em Ottawa, a autoproclamada “rainha do Canadá” da conspiração extremista, Romana Didulo, queimou uma bandeira do país diante do Parlamento. Antes, ela pediu o extermínio de pais que vacinaram seus filhos.

Na Nova Zelândia, um manifestante chegou a desenhar uma suástica nazista em uma estátua

Os protestos canadenses deram uma plataforma perturbadora a uma série de outras opiniões sombrias e marginais, amplificadas por preocupações genuínas. “O comboio da liberdade representou uma mistura de questões reais, imaginárias e exageradas, unidas por um senso comum de alienação e queixas”, escreveu em um artigo do jornal Globe and Mail Daniel Panneton, pesquisador do ódio online. “(Ele) incluiu uma série variada de separatistas ocidentais, antivacina, teóricos da conspiração, antissemitas, islamófobos e outros extremistas. Isso não foi surpresa para ninguém que estivesse prestando atenção: vários dos organizadores do comboio têm um histórico de ativismo nacionalista branco e racista.”

Os organizadores do comboio citados em um processo legal coletivo por moradores de Ottawa dizem que suas vidas foram extremamente perturbadas. Entre eles, figuram Tamara Lich, que até recentemente exercia uma função num partido separatista, Pat King, teórico da conspiração que compartilhou slogans racistas, e Benjamin Dichter, produtor de podcast que foi processado por disseminar insultos contra muçulmanos.

Mesmo que as poucas placas de Trump e bandeiras confederadas tenham chamado atenção da imprensa, é a bandeira canadense que se tornou o símbolo do movimento. A folha de bordo vermelha está pintada na lateral dos caminhões, estampadas em bonés e carregadas nas mãos de crianças. O país tem seus próprios extremistas. “Tenha cuidado ao divulgar que este é um movimento financiado ou organizado por estrangeiros. Este movimento de ocupação é canadense, formado por canadenses, organizado por canadenses”, tuitou a Rede Canadense Contra o Ódio.

Scott, que possui uma empresa de equipamento agrícola perto da cidade e não quis revelar seu sobrenome, disse que veio observar os protestos com seu filho. Ele não apoiava a decisão de paralisar ­Ottawa, mas tinha preocupações sobre a ordem de vacinação do governo. Ele discorda dos manifestantes agora, principalmente porque diz que o bloqueio está desviando a atenção de sua causa principal. “Não aprovo eles estarem no centro da cidade com seus caminhões. Acho que, você sabe, a mensagem subjacente foi desacreditada e afastada para o lado.”

Minoria ruidosa. A desvantagem numérica não mina o ímpeto dos antivacina – Imagem: Dan Peled/Getty Images/AFP

Líderes de todo o mundo tentam equilibrar a necessidade de combater o extremismo que o movimento dissemina com o reconhecimento de que seus líderes tocam medos e tristezas muito reais. ­Emmanuel Macron pediu que os participantes do comboio francês fiquem calmos, dizendo que ele “ouviu e respeita” o descontentamento causado pela crise sanitária. “Todos estamos cansados do que vivemos nos últimos dois anos. Esse cansaço se manifesta de maneiras diferentes: para alguns em confusão, para outros depressão. E, às vezes, o cansaço manifesta-se na forma de raiva.” E acrescentou: “Sempre mantivemos o direito de protestar”.

Na Nova Zelândia, um comboio de mil manifestantes, que se reuniu no gramado­ do Parlamento e nas ruas ao redor na terça-feira 8, tinha se reduzido a algumas centenas de pessoas três dias depois. Elas afirmavam que não sairiam até que a primeira-ministra, Jacinda Ardern, se comprometesse a eliminar a obrigatoriedade da vacina. Mas, assim como no Canadá, a vacina parecia servir de cavalo de batalha para um leque de outras queixas. Em certa altura, um manifestante desenhou uma suástica numa estátua e outros picharam “enforquem-nos” na escadaria do Parlamento. A ameaça de esta retórica explodir em violência foi reconhecida pelos serviços de contraterrorismo do país em novembro.

O professor Grant Duncan, especializado em política na Universidade ­Massey, disse que preocupações legítimas sobre a vacina estavam se perdendo no pântano da conspiração e da linguagem abusiva. “É particularmente surpreendente, na verdade, ver as retóricas de Trump e do QAnon misturadas com bandeiras da independência maori, é uma justaposição perturbadora”, avalia. Em uma rara exibição de unidade, nenhum político saiu ao encontro dos manifestantes, o que, segundo Duncan, mostrou que tanto o Parlamento quanto o povo da Nova Zelândia em geral deram “quase zero de apoio a esse protesto. Esta é uma minoria ruidosa”. •


*Colaboraram Eva Corlett, de Wellington, e Kim Willsher, de Paris.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1196 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Negacionismo global “

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