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Afasta de mim esse cale-se
Uma onda de censura, capitaneada principalmente pela direita, atinge a Europa e os Estados Unidos


Duas conferências em duas cidades europeias. Duas tentativas de proibição, uma com êxito. Duas reações diferentes dos políticos e da mídia. Tudo isso nos diz algo sobre o estado atual da liberdade de expressão. Na terça-feira 16, Emir Kir, presidente da Câmara de Bruxelas, na Bélgica, gerou manchetes internacionais quando tentou proibir uma conferência conservadora na cidade, a NatCon. A tentativa falhou, foi denunciada como “inaceitável” pelo primeiro-ministro belga, Alexander de Croo, e considerada ilegal pelo mais alto tribunal administrativo.
Cinco dias antes, com muito menos comentários ou condenações, a polícia de Berlim encerrou à força uma conferência sobre a Palestina. Ghassan Abu-Sittah, reitor da Universidade de Glasgow e cirurgião reconstrutivo que deveria falar sobre suas experiências nos hospitais de Gaza, foi proibido de entrar na Alemanha. O ex-ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis, agora secretário-geral do movimento de esquerda DiEM25, foi alvo de um betätigungsverbot, proibição de qualquer atividade política, incluindo a participação por vídeo de outro país.
Os oradores na conferência NatCon denunciaram o papel da “elite liberal” e da União Europeia na tentativa de silenciá-los. Na verdade, foi o ato de um prefeito dissidente que tinha sido expulso do Partido Socialista por suas ligações com políticos turcos de extrema-direita. Em contraste, a conferência de Berlim foi encerrada com toda a força do Estado e sem qualquer reação da elite política ou dos maiores veículos de comunicação.
A liberdade de expressão é comumente vista como uma questão esquerda-direita: a esquerda como apoiadora da censura, a direita como “guerreiros da liberdade de expressão”. Isso, porém, significa considerar a conservadora criação de mitos por seu valor nominal. Certamente, o compromisso histórico da esquerda com a liberdade de expressão foi desgastado nos últimos anos. A hostilidade da direita à censura, porém, raramente foi mais que hipócrita.
Nigel Farage, que falava quando a polícia surgiu na conferência NatCon, foi entrevistado pela BBC Radio 4. Ele foi questionado sobre as políticas de censura do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán. A hostilidade de Orbán à imigração, ao liberalismo e à UE transformou-o num herói político nos círculos da NatCon. O que dizer das políticas autoritárias de Orbán que minaram tanto a liberdade de imprensa quanto a liberdade acadêmica? Tais políticas, insistiu Farage, nada tinham a ver com censura. Em vez disso, o objetivo de Orbán era “calar um milionário global, George Soros, doutrinando crianças. Isso é diferente”.
Kir utilizou duas justificativas em sua tentativa de proibir a conferência NatCon: que o público precisava estar “seguro” e a conferência era uma reunião de “extrema-direita”. Tanto o uso da “segurança” como validação da censura quanto o alargamento de rótulos como forma de atingir os adversários tornaram-se centrais para a “cultura do cancelamento” contemporânea. Embora estes sejam frequentemente usados pela esquerda, a direita é igualmente hábil (ou mais, em muitos casos) na sua exploração.
A onda de legislação anti-woke que varre os estados republicanos dos EUA, incluindo proibições de pontos de vista “inaceitáveis” em universidades e empresas, é muitas vezes justificada em termos protecionistas. Em muitos desses estados, os professores estão proibidos de apresentar material que possa fazer “qualquer indivíduo sentir desconforto, culpa, angústia ou qualquer outra forma de sofrimento psicológico, devido à sua raça ou sexo”. No início deste mês, um tribunal de apelação considerou inconstitucional que o estado americano da Flórida, através de sua “lei de liberdade individual”, a chamada legislação anti-woke, proibisse “ideias designadas como ofensivas”. Um juiz da Flórida observou que a lei “proíbe os professores de expressar pontos de vista desfavorecidos… ao mesmo tempo que permite a expressão irrestrita de pontos de vista opostos”.
Na Universidade Columbia, uma professora chegou a pedir a remoção de emojis da bandeira palestina em aulas online
Em sua pesquisa sobre a cultura de cancelamento nos campi dos EUA, The Cancelling of the American Mind (O Cancelamento da Mente Americana), Greg Lukianoff e Rikki Schlott observam que: “Ironicamente, a direita e a esquerda trocam de lugar quando se trata de impor códigos de discurso no campus”. A direita sempre foi, porém, censuradora. O que mudou é que a esquerda forneceu aos conservadores novas armas para prosseguirem em sua censura. A direita adotou alegremente a linguagem da segurança e da ofensa para perseguir seus fins ideológicos, ao mesmo tempo que denuncia o uso destes pela esquerda como woke.
Tomemos como exemplo as atuais tentativas de suprimir o discurso pró-palestino. Dos campi universitários às redes sociais, acadêmicos, artistas e escritores foram demitidos ou silenciados por apoiar os direitos palestinos ou por criticar Israel. Ao descrever um caso em que foi pedido a estudantes da Universidade Columbia que removessem os emojis da bandeira palestina de seus nomes durante reuniões no Zoom, porque estes “causavam reações traumáticas”, a acadêmica e escritora Natasha Lennard observou que isso poderia soar como “material de paródia da extrema-direita: um exemplo absurdo de cultura ‘woke’”. “As pessoas consideram que o sentimento de desconforto com a informação é o mesmo que estar fisicamente inseguro”, observou um aluno. Essa fusão foi possibilitada por muitos na esquerda que corroeram, nas palavras de Lennard, a distinção “entre sentir-se seguro e estar seguro”.
Não são, porém, apenas as vozes pró-Palestina que podem ter seus direitos minados em nome da proteção do público. Um agente da Polícia Metropolitana de Londres disse recentemente a Gideon Falter, da Campanha Contra o Antissemitismo, que, sendo uma pessoa “declaradamente judia”, não poderia abordar uma marcha pró-Palestina – embora a maioria dessas marchas inclua um bloco judeu visível. A polícia pediu desculpas, mas, em sua declaração inicial, acrescentou que pessoas como Falter devem saber que “sua presença é provocadora”. A polícia foi então obrigada a pedir desculpas pelo seu pedido de desculpas. É difícil pensar numa definição de antissemitismo mais clássica do que dizer a um judeu que não pode ser visivelmente judeu por medo de causar transtorno.
Precisamos reagir às tentativas de censurar o discurso e a crítica política sob o pretexto de “proteger o público”. Devemos também reconhecer a forma como a esquerda forneceu à direita armas para atacar causas progressistas. Os que lutam pela mudança social são sempre os mais prejudicados pela imposição da censura. •
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Publicado na edição n° 1308 de CartaCapital, em 01 de maio de 2024.
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