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A Wikipedia não é perfeita, mas é um bom modelo

Pessoas em computadores do governo modificaram páginas da Wikipedia, mas ela oferece o modelo mais viável atualmente

O logo da Wikipedia no escritório da Fundação Wikimedia, responsável pela enciclopédia, em San Francisco, na Califórnia. O modelo é bom
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Por John Naughton

A disputa sobre as revelações do Channel 4 de que pessoas usando computadores do governo têm feito edições questionáveis em páginas da Wikipedia é intrigante. É claro que seria escandaloso se transparecesse que autoridades do governo ou da polícia britânicos conspiraram para modificar páginas da Wikipedia sobre as mortes de Jean Charles de Menezes, Damilola Taylor ou Lee Rigby. Mas não foi isso que a reportagem do Channel 4 conseguiu estabelecer: ela afirmou apenas que alguma pessoa ou pessoas desconhecidas, usando computadores com endereços IP do domínio “gov.uk”, haviam editado as páginas da Wikipedia em questão.

Na página de Menezes, por exemplo, este texto foi acrescentado ao artigo: “Houve certa reação pública contra Menezes, com um tabloide britânico, em particular, protestando que ele recebeu mais publicidade que qualquer das 52 pessoas mortas nos atentados a bomba. Grupos ‘antiguerra’ que defendem o caso de Menezes ignoram o destino das vítimas dos bombardeios, além de ‘compreender’ por que os ataques ocorreram devido ao papel do Reino Unido no Iraque”. Outra edição projetou dúvida sobre a situação legal do morto como imigrante.

Membros da família de Menezes estão compreensivelmente indignados com esse tipo de modificação, e a comoção que se seguiu aparentemente incitou o governo a criar um código de conduta para autoridades públicas lidarem com artigos da Wikipedia. Essa é uma boa notícia, porque não é a primeira vez que se detectam más práticas oficiais. Em abril passado, por exemplo, a BBC relatou que a frase “todos os muçulmanos são terroristas” foi adicionada à página sobre véus e que outra edição deletou texto no artigo de Cherie Blair sobre o escândalo de compra de apartamento que ganhou manchetes em 2002. E o Liverpool Echo descobriu que insultos foram acrescentados ao verbete sobre o desastre de Hillborough.

Esses miniescândalos são um maná do céu para os membros da mídia e outros que acham o conceito da Wikipedia alarmante ou perturbador. A ideia de que qualquer Tom, Dick ou Harriet possa editar um artigo de uma enciclopédia, e que o todo resultante se transforme em um recurso global valioso, ainda parece incrível para certas pessoas. E o problema dessas tempestades periódicas da mídia sobre abusos descobertos é que elas obscurecem uma verdade importante sobre a Wikipedia: que o modo como ela funciona tem lições importantes para todos nós.

Como? Basicamente porque a Wikipedia incorpora uma nova abordagem da criação, disseminação e curadoria do conhecimento em um mundo conectado. A coisa mais notável sobre essa abordagem é que ela é completamente aberta: a razão pela qual o Channel 4 pôde descobrir o que relatou é que o histórico de qualquer edição da Wikipedia fica livremente disponível, remontando à primeira encarnação da página. Por isso, qualquer pessoa com tempo e disposição pode ver a evolução e a transformação da página ao longo de sua vida. Igualmente, qualquer pessoa que modifique uma página tem grande dificuldade para encobrir seu rastro. Do mesmo modo, cada página da Wikipedia tem uma página de discussão associada, que permite que as pessoas expliquem ou justifiquem as mudanças efetuadas.

A Wikipedia é um típico produto da internet aberta, já que começou com alguns princípios simples e desenvolveu uma fascinante estrutura de governança para lidar com os problemas conforme surgiram. Ela reconheceu desde cedo que haveria desacordos legítimos sobre alguns assuntos e que eventualmente empresas e outras entidades poderosas a tentariam subverter ou corromper.

Conforme esses desafios surgiram, os editores e voluntários da Wikipedia desenvolveram procedimentos, normas e regras para abordá-los. Estes incluíam software para detectar e remediar vandalismo, por exemplo, e processos como a regra de “três reversões”. Isso quer dizer que um editor não deve desfazer as edições de alguém em uma página mais de três vezes em um dia, e que depois disso as discórdias são colocadas sob mediação formal ou informal, ou se coloca uma advertência na página alertando os leitores de que há controvérsia sobre o tema. Algumas páginas eternamente polêmicas, por exemplo a sobre George W. Bush, são bloqueadas. E assim por diante.

Ao tentar descobrir como se autodirigir, portanto, a Wikipedia vem enfrentando os problemas que nos importunarão cada vez mais no futuro. Em um mundo amplamente conectado, opiniões e informações serão superabundantes, a autoridade dos sistemas de verificação e controle de qualidade mais antigos, baseados na mídia impressa, será desgastada e os recursos de informação serão intrinsecamente maleáveis. Nesse mundo cacofônico, como saberemos o que é confiável e verdadeiro? Como vamos lidar com os desacordos e as disputas sobre o conhecimento? Como separar o trigo digital do joio digital? A Wikipedia pode ser imperfeita (o que não é?), mas no momento é o único modelo que temos para abordar esses problemas.

Leia mais em Guardian.co.uk

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