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A solidão da consciência

O jornalista Nathan Thrall e as agruras de ser um judeu crítico quando os compatriotas só querem vingança

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Em má hora. Thrall está em turnê para lançar seu novo livro, uma ode à conciliação entre judeus e palestinos – Imagem: Yahel Gazit/Middle East Images/AFP e Judy Heiblun
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Nos dias que se seguiram aos ataques do Hamas no sul de Israel, o jornalista norte-americano Nathan Thrall, ex-diretor do projeto árabe-israelense no Grupo de Crise Internacional, viu-se ansiosamente situa­do entre a preocupação com a esposa e as filhas em sua casa em Jerusalém e a consciência de que, enquanto segue em turnê para promover seu novo livro, cada aparição pública agora é mais tensa do que habitualmente, pela possibilidade de mal-entendidos. “Os acontecimentos tornaram mais difícil eu falar”, diz, quando nos encontramos em Londres. “Muitos que leram Um Dia na Vida de Abed Salama me disseram que o acharam presciente, o consideram um livro necessário. Mas para outros há a sensação de que trago uma mensagem de nuances. Estou lhes contando sobre a vida de judeus e palestinos numa situação claramente injusta, e eles sentem que não podemos falar de uma injustiça diante da atrocidade.” Ele prossegue: “É um momento muito cru, quase um momento pós-11 de Setembro no grau em que as pessoas têm medo de expressar simpatia pelos palestinos, e ainda não sei qual das duas atitudes vai prevalecer”.

O livro de Thrall deve seu título a um homem que ele agora considera amigo: Abed Salama, que vive em Anata, cidade da Cisjordânia próxima de Jerusalém, quase cercada pela barreira de separação israelense. Em 2012, o filho de 5 anos de Salama, Milad, foi morto depois que o ônibus em que viajava numa excursão escolar sofreu um acidente. No livro, Thrall descreve as muitas iniquidades que Salama, como palestino, teve de suportar nas horas e nos dias após o acidente, a começar pela impossibilidade de viajar até o hospital onde Milad poderia estar. O jornalista também usa a tragédia para contar as histórias de muitos outros. Entre eles estão o colono israelense Eldad Benshtein, que atendeu ao acidente como paramédico, e Dany Tirza, que, como líder do planejamento estratégico das Forças de Defesa de Israel na Cisjordânia, traçou com eficácia o muro de separação, decidindo exatamente onde seria construído.

Thrall usa essas experiências para esclarecer o que chama de “sistema”, uma estrutura repressiva que considera insustentável, mas que não espera que mude em breve, haja o que houver em Gaza. “Este é o maior desafio que ela já enfrentou. Não se pode exagerar o choque que os israelenses sentiram ao ver imagens de homens armados a mover-se por uma cidade como Sderot. É algo saído de seus pesadelos, uma inversão total de toda a noção que têm sobre o isolamento de Gaza, um problema sobre o qual eles não precisam pensar, exceto durante as escaladas periódicas”, lamenta. “Mas esta guerra não terminará com a igualdade entre judeus e palestinos. Continuará a existir um regime de controle forçado, quer Israel esteja presente em Gaza, quer consiga encontrar representantes na Autoridade Palestina que possam ajudá-lo a controlar ­Gaza, ou simplesmente decida deixar o ­Hamas no poder. Entretanto, tem de arrasar Gaza para satisfazer seu próprio público, para lhes dar uma resposta à questão de como pode afirmar com credibilidade que isso nunca mais acontecerá.”

“Sinto uma responsabilidade moral de fazer o que posso”

Thrall não descarta a possibilidade de que o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, sobreviva à crise: “Ele deveria estar com medo, mas acho que é muito bom para ele ter formado um governo de unidade nacional. Todas as falhas serão compartilhadas de agora em diante”.

A Autoridade Palestina, que controla a Cisjordânia, e seu presidente, ­Mahmoud Abbas, nunca foram tão gravemente ameaçados quanto agora, tendo uma organização rival desafiado ­Israel de uma forma que nunca o fez. “O Hamas mostrou-se disposto a sacrificar o controle territorial de Gaza por um objetivo maior, a liderança do movimento nacional”, afirma. As ações do Hamas não proporcionarão, no entanto, uma grande vitória. “O mundo tem um histórico de ser capaz de ignorar os palestinos. Gaza ficará em ruínas, muitas vidas terão sido perdidas, eles terão falhado completamente.”

Thrall fez contato com Salama pela primeira vez por meio de um amigo. “Moro a 2 quilômetros de Amata. Eu os percorria semanalmente, sem me importar que esse gueto fique abaixo da Universidade Hebraica de Jerusalém, que você pode olhar do belo e bem cuidado terreno do campus para os postos de controle e as filas de pessoas tentando passar por eles.” Ganhar a confiança de Salama foi relativamente simples, ele estava desesperado para falar com alguém sobre seu filho, e agora se refere a Thrall como “o homem que o fez chorar” (ele entende isso como um elogio). Mas os israelenses no livro também ficaram felizes em conversar, e as suspeitas desapareceram quando o conheceram. “Eu sabia que a única maneira de ter sucesso seria se os leitores sentissem que era uma representação honesta, se todos parecessem humanos, ­reais, com motivos, amores, ciúmes e ambições explicáveis.”

Mesmo assim, esse trabalho é difícil. Ser um judeu crítico de Israel é também, às vezes, ser muito solitário. “Minha mãe é uma típica emigrada judia-soviética para os Estados Unidos”, diz. “Ela tem uma ligação tribal com Israel. Não suporta ler nada que escrevo.” Thrall mora no país há 12 anos. Ele pretende ficar? Sim, mas é complicado. “Sinto uma responsabilidade moral de fazer o que posso. Sinto essa responsabilidade como norte-americano, cujos impostos dão quase 4 bilhões por ano a Israel. Sinto-a como judeu, porque o governo israelense afirma agir em nome do povo judeu, e sinto-a como um ser humano que vive em Jerusalém e tem amizades profundas com os palestinos. Mas… o nível de brutalidade que tenho visto não apenas desde sábado, mas no sábado, me deixa com o coração partido. Tenho três filhas que nasceram nesta sociedade, e temo que lhes esteja prestando um péssimo serviço ao criá-las neste lugar, e que, se algo acontecer com elas, a culpa será minha.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1283 de CartaCapital, em 01 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A solidão da consciência’

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