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A razão vencerá?

Apesar das incertezas, a Argentina parece dobrar a aposta na resiliência democrática

Mano a mano. Na descrição de parte da mídia argentina, o segundo turno entre Massa e Milei opõe o nojo ao medo – Imagem: Luis Robayo/AFP e Emiliano Lasalvia/AFP
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A democracia argentina mostrou mais uma vez sua resiliência nas eleições. Se a vitória de Javier Milei nas primárias de agosto causou um terremoto no cenário político, o resultado do primeiro turno da eleição para presidente da República provocou, no domingo 22, níveis semelhantes de surpresa. Depois de ceder ao canto da sereia de um candidato populista de direita cuja proposta implicava o fim de qualquer tipo de indústria nacional e a destruição completa do Estado, os argentinos perceberam que esse não parecia ser um caminho viável e se voltaram à única força política capaz de resistir aos diferentes ventos da política nacional.

Na reviravolta, o peronista Sergio Massa, terceiro lugar nas eleições primárias, saiu vitorioso da disputa, concentrando 36,6% dos votos do primeiro turno e mostrando alta competitividade eleitoral. Alçado à condição de favorito, Milei registrou 29,9% das preferências do eleitorado e deixou de fora do segundo turno uma das principais correntes políticas, representada por Patricia ­Bullrich, do Juntos por el Cambio.

Para se ter a dimensão do tamanho da reversão política que as eleições significaram, três excepcionalidades são importantíssimas de ser percebidas. Em primeiro lugar, a estagnação de Milei, que não chegou a ter 1 ponto porcentual a mais de votos em relação ao resultado atingido nas eleições primárias. Para quem vê o copo libertário meio cheio, Milei chega ao segundo turno longe da liderança. Com o aumento da participação do eleitorado em relação às primárias, perdeu para o voto de centenas de milhares de argentinos. Mas sua proposta de ultraliberalismo, além da maneira de se apresentar como completamente instável, levaram a uma rejeição forte por parte de todos os eleitores que não haviam votado nele na primeira fase. O que antes parecia ser uma base a ser ampliada pode ter sido seu teto. Sua primeira declaração coordenada e estruturada foi justamente o discurso após os resultados do primeiro turno, num tom abaixo do adotado durante a campanha, em uma possível tentativa de convencer eleitores de Bullrich de que vale correr o risco. Esse é seu maior desafio, mas como alcançá-lo mantendo o mesmo conjunto de ações que incluem defesa de armas, críticas grosseiras ao papa, ataques aos direitos das mulheres e incapacidade de explicar sua proposta de dolarização para salvar a economia? Assim, nesta primeira excepcionalidade demonstramos se os argentinos sucumbiram ao voto de protesto generalizado e radical ou se conseguiram perceber a tempo que esse não é o caminho.

Ao contrário dos brasileiros em relação a Bolsonaro, os argentinos não ignoram o que pensa e diz o extremista Milei

A segunda excepcionalidade está ligada a Sergio Massa. Dificilmente, em qualquer democracia no mundo, o ministro da Economia de um país em crise sairia vencedor no primeiro turno. O voto em Massa explica-se basicamente por sua capacidade de alcançar os eleitores do centro, de assumir a responsabilidade pela condução da economia e por sinalizar uma reorganização necessária a partir de 10 de dezembro, data na qual o novo presidente assumirá o governo. Prova que o peronismo continua vivo e, talvez, até com melhor saúde do que em tempos recentes. Mas ele precisa de mais. O mapa da votação de domingo indica os caminhos que o governista tem a percorrer. Na capital argentina, a vitoriosa foi Patricia ­Bullrich, com 41% dos votos, 9 pontos porcen­tuais à frente de Massa. Em seu discurso no domingo à noite, o governista sugeriu um “governo de unidade nacional”. Mas, poucos minutos antes, Bullrich, pertencente à coalização que se construiu como antítese do peronismo governista, deixou claro que unir os descontentes – como exaltou ­Milei, dois terços dos eleitores querem mudança – não será tarefa fácil para ele. ­Assim como será difícil o trabalho de manter preços sob controle para que uma névoa de estabilidade continue a pairar sobre o país até o segundo turno. Como destaca a mídia argentina, é uma briga do nojo contra o medo – e as armas da ­disputa ainda precisam ser reapresentadas.

Por último, vale a pena mostrar que o destino da Juntos por El Cambio, a chapa pela qual Bullrich concorreu, também aparece como um ponto excepcional. Ou seja, uma oposição dentro de um sistema político de revezamento de poder entre duas concepções, os peronistas e os ­cambiemos ou o macrismo, acaba por levar a um desfecho completamente inesperado, devido à incapacidade da própria candidata de manter os votos recebidos pela chapa nas primárias. Bullrich fez uma campanha voltada para a defesa do livre-mercado, com propostas mais próximas de Milei e com duras críticas ao peronismo, e acabou por ceder ao candidato de extrema-direita o posto histórico de sua corrente no imaginário político nacional. Macri, contudo, é apontado como um dos elementos-chave nesse esfacelamento, por demonstrar a Bullrich um apoio a conta-gotas. Tudo indica que o ­cambiemos tem poucas chances de sobrevivência.

Com sérios problemas econômicos e sociais e com um recorde de abstenção no primeiro turno, a única palavra possível para o segundo turno é incertidumbre. Mas, diferentemente do caso brasileiro, o eleitorado argentino escolheu não relativizar o que Milei, assim como Bolsonaro, fez, faz e diz. A adesão significativa às propostas raivosas de um candidato de extrema-direita alterou o tabuleiro político, e quiçá o futuro, do país. Caberá aos peronistas depois de governar para acentuar a polarização, conduzir o país com o objetivo de estabelecer uma ampla coalizão ao centro. Massa é o candidato ideal para essa tarefa. •


*Leonardo Avritzer é professor-titular de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutor em Sociologia Política pela New School for Social Research e coordenador do ­INCT–IDDC. Andressa Rovani é jornalista e doutoranda em Ciência Política pela Unicamp.
O Observatório das Eleições na Argentina é um projeto internacional organizado pelo Instituto da Democracia, sediado na UFMG e coordenado por Leonardo Avritzer. O projeto envolve uma equipe de pesquisadores de várias instituições e universidades, tanto no Brasil quanto na Argentina, e tem como principal objetivo acompanhar as eleições que estão programadas para ocorrer até 19 de novembro no país vizinho.

Publicado na edição n° 1283 de CartaCapital, em 01 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A razão vencerá?’

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