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A queda de Cabul mostra que a guerra global ao terror tornou-se um enorme desastre

Vinte anos depois, o fracasso vai muito além da capital afegã

Em 20 anos, os soldados não encontraram o alvo. (FOTO: Tim Morgan/U.S. Army)
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A queda de Cabul é um desastre militar de consequên­cias políticas ainda difíceis de identificar completamente. É, talvez, conveniente começar por lembrar que esta é a primeira derrota militar da Otan. Não é dos norte-americanos, é da Otan. Se quisermos colocar bem as questões políticas que resultam desta desgraça militar, devemos começar por recordar que todo o Ocidente se empenhou nesta guerra, cujo objetivo sempre foi o de mudar o regime e construir um novo Estado, viável, estável e democrático.

No início de toda a aventura, esta era a “guerra boa”, aquela que se destinava a punir os responsáveis pelos atentados terroristas e a impedir a continuação da sua atividade (viria a ser assim designada depois da invasão do Iraque). Não tenho dúvidas de que o desastre militar representa também uma derrota humanitária e uma ameaça aos direitos humanos dos cidadãos afegãos. Isso constitui, também para mim, a primeira preocupação. Mas só ver isso é pouco, muito pouco. O que vejo na queda de Cabul é a verdadeira face do imenso desastre político em que se transformou a chamada “guerra global ao terror”.

Comecemos pelo princípio e pelos fatos. A guerra ao terror começou em 14 de setembro de 2001, com a aprovação no Congresso dos EUA de uma lei de “autorização de uso da força militar”. A seguir veio a invasão do Afeganistão, depois o Iraque, depois a guerra no Iêmen, a Líbia, o Paquistão, depois a Síria, depois, enfim, todo o Grande Médio Oriente. Esta é a guerra mais longa, mais cara e mais abrangente que os Estados Unidos travaram ao longo de sua história. O mapa geográfico de todas as operações contraterroristas levadas a cabo pelo Exército norte-americano abrange 80 países, cerca de 40% das nações do planeta. A guerra ao terrorismo foi de fato global e suas consequências serão igualmente globais.

Há nesta guerra interminável várias datas que competem entre si como momentos decisivos. A primeira é a de 20 de março de 2003, dia em que começou a invasão do Iraque, cujo casus belli foi inteiramente baseado numa das maiores mentiras históricas fabricadas por um Estado, de modo a arrastar o seu povo e alguns dos seus aliados para a guerra. Outro momento com lugar garantido na história desta guerra é o de 28 abril de 2004, dia em que a cadeia de televisão CBS News revelou as primeiras fotografias da prisão de Abu Ghraib e em que o mundo ficou a saber que o Exército dos EUA torturava e maltratava cruelmente seus prisioneiros. Consideradas em conjunto, as ­duas datas assinalam o momento da tragédia norte-americana no Oriente Médio.

Esta não é uma derrota só dos EUA. É também da Otan, a primeira em sua história

O balanço da guerra ao terror e a recente tomada de Cabul obrigam-nos, no entanto, a regressar à primeira iniciativa militar deste conflito – a invasão do Afeganistão em 7 de outubro de 2001. Em fevereiro de 2020, quando Donald Trump fechou o acordo com os talebans que estabelecia a retirada das forças militares norte-americanas em maio de 2021, o governo de Cabul não conseguia sequer cobrir o orçamento militar e o território controlado pelos insurgentes não parava de aumentar. Quase 20 anos depois, centenas de toneladas de bombas depois, dezenas de milhares de baixas depois, 1 trilhão de dólares depois, os EUA reconheciam, finalmente, o que o comandante das forças inglesas declarou em 2008 – a guerra do Afeganistão não poderia ser ganha militarmente.

Na crônica destes últimos dias nada é mais triste do que assistir ao debate de atribuição de culpas que ocupa a política em Washington. Na verdade, Joe Biden tinha diante de si uma única escolha a fazer – honrar o acordo que Trump assinara fazendo sair as tropas até a primavera ou estender a missão militar sem prazo para acabar. Estes eram os dois cenários – sair prontamente ou ficar indefinidamente. Nos últimos meses, alguns advogavam a ideia de que era necessário assegurar uma “retirada responsável”, significando isto que era necessário manter uma “muito pequena” unidade de contraterrorismo no Afeganistão para prevenir o ressurgimento da Al Qaeda ou do Estado Islâmico.

A ideia parece interessante como forma de “salvar a face”, mas impossível de ser aceita pela outra parte. Nunca os talebans concordariam em manter uma unidade militar em solo afegão pela simples razão de que isso iria contra a sua principal reivindicação e a sua principal bandeira – a libertação do país da presença de forças militares estrangeiras. E esta é, sem dúvida, a maior das assimetrias de julgamento que justificou uma guerra tão longa – os norte-americanos vêem-se como libertadores, os talebans vêem-nos como ocupantes.

A evacuação da embaixada dos Estados Unidos em Cabul fez lembrar o ­Vietnã, é certo. Mas essa não é a comparação mais importante. Robert ­McNamara, um dos políticos diretamente responsável pelas piores decisões nessa guerra, deu em 2003 uma comovente entrevista televisiva na qual assumiu que a principal razão para a derrota militar foi nunca terem percebido as aspirações nacionalistas e anticolonialistas do povo vietnamita. Também no Afeganistão nunca os responsáveis políticos e militares norte-americanos foram capazes de admitir que grande parte da sobrevivência e resistência dos talebans como movimento político e militar se deveu unicamente a este ponto fundamental – os EUA eram um exército ocupante.

Regressemos ao quadro geral. Vinte anos depois, a “guerra global ao terror” trouxe ao Ocidente a primeira derrota militar da Otan. Vinte anos depois, este conflito trouxe, de novo, a tortura como arma de guerra. Vinte anos depois, esta guerra trouxe ao Ocidente a multiplicação das instituições estatais de vigilância e as novas leis de enfraquecimento das liberdades civis constitucionais.

Vinte anos depois, este evento trouxe consigo a maior crise de refugiados que o mundo teve de enfrentar desde a Segunda Guerra Mundial. Vinte anos depois, esta guerra trouxe para a batalha o drone armado, os assassinatos-alvo e a diluição das fronteiras da soberania estatal. Vinte anos depois, esta guerra não diminuiu o terrorismo, mas espalhou-o pelo mundo inteiro. Vinte anos depois, o fracasso vai muito além de Cabul.

Publicado na edição nº 1171 de CartaCapital, em 19 de agosto de 2021.

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