Mundo

cadastre-se e leia

A nova onda e as rochas

Os desafios dos governos progressistas da região em um ambiente internacional mais hostil e incerto

Flores e espinhos. Petro vai assumir uma Colômbia cheia de esperança. Boric (direita), que venceu em um Chile ávido por mudanças, agora enfrenta a decepção - Imagem: Redes sociais
Apoie Siga-nos no

Tem-se falado muito da nova onda progressista na América Latina. A evolução política recente no México, Honduras, Bolívia, Argentina, Chile e Colômbia justificam o tema. Como o que é novo pode não ser inovador, e a primeira onda acabou em muita frustração e retrocesso, é importante analisar as condições que podem garantir a inovação. A frustração causada pelo fracasso ou bloqueio da primeira onda teve um efeito devastador, porque as forças políticas conservadoras nacionais e estrangeiras conseguiram fazer recuar o relógio do desenvolvimento dos países várias décadas em meia dúzia de anos. Algo que não se pode repetir por todas as razões, inclusive porque é bem provável que desta vez as instituições democráticas colapsem. O que aconteceu no Sri Lanka em 9 de julho é um aviso perturbador: inconformado com a carestia de vida e o colapso da economia, o povo invadiu o palácio presidencial. Incapaz de resolver os problemas, o presidente fugiu para o estrangeiro. Acresce que o contexto internacional da nova onda progressista é muito diferente e, em princípio, muito mais hostil que o da primeira onda. Estamos à beira de uma recessão global, a viver a vertigem da ameaça de uma guerra nuclear, e com a rivalidade ao rubro entre os EUA e a China.

São três as condições principais da inovação possível: a transição, as alianças e a presença na rua. A primeira condição é a política de transição. A nova onda não poderá repetir o que fez no passado: uma política macroeconômica basicamente neoliberal, e em estreita aliança com as elites financeiras, combinada com a significativa redistribuição social do excedente criado pelo contexto internacional expansionista. Como se viu no Brasil ou na Bolívia, a mínima alteração nesse contexto reativou os instintos golpistas das elites. Entretanto, esse contexto deteriorou-se ainda mais, e a crise ambiental ficou mais do que nunca vinculada à política econômica (Amazônia contra o agronegócio). Daqui em diante, é impossível ter uma política ambiental de esquerda e uma política econômica de direita. A opção é clara, mas decidir por ela implica investir contra interesses econômicos muito poderosos.

Tampouco é possível a urgente redistribuição social sem tributar o capital financeiro e as grandes fortunas. A transição que está em causa não tem por horizonte o socialismo. O seu horizonte é mais modesto, mas não menos exigente: fazer com que seja a democracia a controlar o capitalismo e não o contrário, como é hoje o caso. Iniciar a transição epocal do paradigma moderno da exploração sem limites dos recursos naturais (a natureza pertence-nos) para um paradigma que promova a justiça social e ecológica, tanto entre os humanos quanto entre os humanos e a natureza (pertencemos à natureza).

Estamos à beira de uma recessão global e a rivalidade entre EUA e China atinge novos patamares

A segunda condição é a política de alianças. O atual contexto é tão desastroso para as classes populares que a tendência dos partidos de esquerda é ter por assente a lealdade política daqueles de baixo e procurar alianças com os de cima. Paradoxalmente, quanto mais duvidosa é a adesão das elites à democracia, mais cruciais se afiguram as alianças com elas e mais cedências se lhes faz. Acontece que esse tipo de alianças inviabiliza à partida a primeira condição (a política de transição) e a suposta lealdade dos de baixo pode rapidamente evaporar-se na síndrome do Sri Lanka.

Como se tem visto, nem os sindicatos, nem os partidos de esquerda tradicionais, nem sequer os movimentos sociais mais institucionalizados têm qualquer papel em evitar a explosão social. No melhor dos casos, vão atrás dela, nunca à frente. Tudo leva a crer que garantir a sustentabilidade da lealdade daqueles de baixo é a única política de alianças recomendável na nova onda progressista. Mas, para isso, é preciso ousar causar algum desconforto aos de cima, ou, ao menos, enfrentar os muito ricos para reduzir os seus privilégios escandalosos.

A terceira condição decorre do fato de, ao contrário do que sucedeu na primeira onda, a sobrevivência da democracia, mesmo a de baixa intensidade que tem dominado, estar hoje em causa. Os governos reacionários que sucederam à primeira onda têm sido de tal modo destrutivos e tão impunemente golpistas que o seu mais infame legado é deixarem a democracia à beira do ­caos. A situação é de bifurcação: basta um pequeno incidente para poder fazer colapsar todo o regime democrático. Isso mostra que, nas próximas décadas, as instituições democráticas não serão suficientes para defender a democracia. A democracia terá de ser eventualmente defendida nas ruas. Essa condição é hoje uma das mais difíceis para os partidos de esquerda. Esses partidos têm desprezado o trabalho de base, de esclarecimento e de apoio de proximidade às populações, cuja sobrevivência mínima está a ruir. Além disso, a presença política na rua (protestos, passeatas etc.), que até há uma década parecia ser um monopólio das forças de esquerda, é hoje cada vez mais ocupada por forças de direita e de extrema-direita. O enfrentamento na rua entre forças opostas é sempre de resultado imprevisível. E nunca é um bom augúrio para a democracia. •


*Diretor emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1218 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A nova onda e as rochas”

 

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo