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A ira dos deuses

Em uma região sagrada para o hinduísmo, os muçulmanos são perseguidos e humilhados

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Islamofobia. Os muçulmanos, que formam uma população de 200 milhões no país, são alvo constante de mentiras, boatos e agressões – Imagem: iStockphoto
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Há séculos conhecido como “terra de Deus”, nas alturas da cordilheira do Himalaia, o estado indiano de Uttarakhand abriga milhares de templos da religião hindu e alguns de seus locais de peregrinação mais sagrados. Enquanto o nacionalismo ­hindu se tornava a força política dominante na Índia sob o primeiro-ministro Narendra Modi, durante a última década, o governo foi, no entanto, acusado de usar como arma política o estatuto sagrado de Uttarakhand e transformar a região em um “laboratório” para políticas radicais e discursos de extrema-direita contra a minoria muçulmana.

Com o início das gigantescas eleições na Índia em 19 de abril, que abrangem um período de seis semanas, Modi e seu Partido Bharatiya Janata (BJP na sigla em inglês) deverão continuar no poder. Durante a última década, a Índia cresceu e tornou-se a quinta maior economia do mundo, mas o governo de Modi é acusado por grupos de direitos humanos de um autoritarismo crescente e de adotar políticas hindutva (primeiro o hinduísmo) que corroem os direitos das minorias, em particular os 200 milhões de muçulmanos. Há previsões de que o BJP prosseguirá com sua agenda se for reeleito. Embora ­Modi tenha negado as acusações de que vai reescrever a Constituição secular para consagrar a Índia como um país de predominância hindu, observadores políticos apontaram Uttarakhand como uma clara visão do que um terceiro mandato do premier pode significar para a frágil democracia secular da Índia.

Em 2021, em Haridwar, a cidade mais sagrada de Uttarakhand, um encontro conhecido como dharma sansad, ou parlamento religioso, foi organizado por grupos hindus de linha dura com a presença de figuras do BJP. Aqui, sacerdotes hindus fizeram ameaças explícitas contra os muçulmanos no estado, apelando à “matança de 2 milhões” deles e afirmando que os hindus deveriam estar “preparados para morrer ou para matar”. O apelo feito num dos discursos a todos os hindus para “participarem dessa limpeza” provocou advertências de um especialista em genocídio de renome internacional de que “um possível genocídio muçulmano” pode ser iminente na Índia. Não foi a primeira vez que muitos desses sacerdotes e líderes hindus de direita incitaram à violência contra os muçulmanos, e a indignação que se seguiu levou à prisão de vários. Todos foram logo libertados sob fiança.

Na reunião em Haridwar, a ideia de Uttarakhand ser uma Dev Bhoomi (Terra de Deus) começou a ganhar destaque público: um estado sagrado apenas para os hindus, onde os muçulmanos não teriam o direito de exercer sua religião ou sequer existir, no entender de alguns. Os mesmos sacerdotes do dharma sansad alertaram que “Dev Bhoomi está sob controle dos jihadistas”, calúnia indireta aos muçulmanos, e apelaram para que o estado seja protegido por todos os meios necessários. “Assim como só os muçulmanos são permitidos em Meca e Medina, devido à tradição islâmica, também exigimos que esta terra seja exclusivamente para hindus”, disse Swami Darshan ­Bharti, presidente da organização ­Devbhoomi Raksha Abhiyan, promotora do evento em ­Haridwar. “Os muçulmanos podem ficar aqui e trabalhar livremente, mas devem respeitar nossa religião. Eles não podem cantar Allahu Akbar, não podemos tolerar isso. A carne halal também não deveria ser permitida em Uttarakhand.”

O BJP governa Uttarakhand desde 2017, e nesse período a ideia de um estado com prioridade hindu ganhou força política. Bharti disse que “o governo do BJP trabalhou em grande medida para Dev Bhoomi” e afirmou que o estado agiu de acordo com várias de suas demandas. Em 2022, foram aprovadas leis contra a conversão religiosa para impedir a chamada “jihad do amor”, uma conspiração infundada que sugeria que homens muçulmanos enganavam mulheres hindus para que se casassem com eles e as convertiam à força ao islamismo, o que fez os homens muçulmanos serem visados pela polícia.

Numa tentativa de reprimir a “jihad territorial”, outra conspiração não comprovada segundo a qual os muçulmanos roubavam terras públicas para construir mesquitas e propriedades, o estado iniciou uma campanha de demolição dos locais de culto muçulmanos.

Mesmo depois de a política ter sido oficialmente suspensa, nos últimos dois anos centenas de mesquitas, santuários e túmulos muçulmanos foram destruídos. Grupos de vigilantes hindus de direita e influenciadores nas redes sociais também têm demolido santuários e destruído sepulturas muçulmanas em todo o estado.

Recentemente, Uttarakhand tornou-se o primeiro estado indiano a impor um código civil uniforme – anulando décadas em que as religiões foram autorizadas a seguir suas próprias leis culturais em questões como casamento e herança. Os estudiosos temem que seja usado para atacar as liberdades culturais e religiosas muçulmanas. O BJP prometeu adotá-lo em nível nacional se for reeleito.

O estabelecimento e a proteção de ­Uttarakhand como um estado de primazia hindu desempenhou um papel na campanha eleitoral, quando foi diretamente citado pelo ministro-chefe do BJP num comício. Prevê-se que a legenda conquistará a maioria, senão todos, dos assentos parlamentares em Uttarakhand, quase 85% hindu. Akhilesh Kumar, de 52 anos, agricultor de trigo e cana-de-açúcar da pequena aldeia de Puranpur, disse que costumava votar no Partido do Congresso, de oposição, até que o BJP o “acordou” para sua religião e a “importância de proteger nossa Dev Bhoomi dos males muçulmanos, como a “jihad do amor”. “Durante muito tempo foi permitido que os muçulmanos fossem demônios, eles são incultos, desrespeitosos e maliciosos para com os hindus neste estado sagrado”, disse Kumar. “Mas fomos unidos contra os muçulmanos sob o comando de Modi. É justo que a Índia se torne um país hindu para os hindus, na verdade, esta é a nossa exigência.”

Entre setores da comunidade muçulmana no estado, a perspectiva de um terceiro mandato de Modi é comentada com apreensão. O medo era palpável em ­Haldwani, pequena cidade em ruínas em Uttarakhand que tem uma proporção incomumente alta de moradores muçulmanos e que em fevereiro sofreu uma das piores violências em muitos anos. Os confrontos começaram depois de as autoridades estatais demolirem uma mesquita e uma madraça como parte de sua campanha contra a “jihad territorial”, alegadamente sem autorização judicial. Os moradores muçulmanos reuniram-se em seguida para protestar e foram atacados pela polícia com cassetetes. Pedras e coquetéis molotov teriam sido atirados contra os policiais em retaliação. O ministro-chefe de Uttarakhand emitiu à polícia ordens de “atirar para matar” contra os alegados manifestantes. Cinco muçulmanos e um hindu foram mortos, todos pela polícia, mas também alegadamente por manifestantes hindus locais, embora ninguém tenha sido acusado. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1307 de CartaCapital, em 24 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A ira dos deuses’

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