Justiça
Um fio de esperança
Investigação contra um conhecido bicheiro do Rio pode lançar luzes sobre a execução de Marielle Franco


Contada em verso e prosa, enaltecida em sambas de enredo e fartamente retratada nas telas do cinema e da tevê, a promíscua relação que une o mundo da contravenção a setores das polícias e a grupos de extermínio no Rio de Janeiro é um problema tão enraizado que hoje é impossível ignorar essa realidade nas análises sociais e políticas do estado. A complexa teia de contatos e interesses entre bandidos, bicheiros, policiais e milicianos cariocas mais uma vez veio à tona, na terça-feira 10, com o início da Operação Calígula do Ministério Público do Rio, a cumprir 29 mandados de prisão e 119 de busca e apreensão, com o objetivo de desbaratar uma das maiores redes de exploração de jogos de azar do País.
O principal alvo da operação é Rogério Andrade, protagonista de uma sangrenta e duradoura batalha pelo controle das máquinas caça-níqueis no Rio. Com dezenas de mortes nos últimos anos, o conflito teve origem nas fissuras internas ocorridas nas principais famílias que controlam o jogo ilegal no estado após as mortes dos lendários “banqueiros do bicho” Castor de Andrade e Waldomiro Garcia, o Miro. Mas outro nome investigado por sua participação no esquema mostra a capilaridade do crime organizado no Rio e pode ter influência em uma importante investigação que chama atenção de todo o Brasil. Um dos sócios de Andrade, segundo a investigação, é o ex-policial Ronnie Lessa, apontado como o executor da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em 2018.
Segundo o Ministério Público, Lessa, preso desde março de 2019, era sócio de Andrade em uma casa de apostas na Zona Oeste do Rio quando matou Marielle e Anderson. No local, funcionava um bingo clandestino financiado pelo bicheiro e administrado por seu filho Gustavo, com o “apoio logístico” de Lessa. As investigações revelaram que a casa foi fechada pela Polícia Militar no dia seguinte à inauguração, mas que um “acerto” operado por Lessa junto a policiais militares e civis possibilitou a sua reabertura e a devolução das máquinas caça-níqueis que haviam sido extraoficialmente apreendidas sem registro de boletim de ocorrência. Antes de ser preso, o ex-policial atuava como elo da família Andrade com os policiais incluídos na folha de pagamento da contravenção.
Ronnie Lessa, um dos assassinos da vereadora, era sócio do contraventor Rogério Andrade
Uma dessas negociações deu-se entre Lessa e a delegada Adriana Belém, então titular da 16ª Delegacia de Polícia, na Barra da Tijuca. Na conversa ficou acertada a devolução de 80 máquinas apreendidas na casa de apostas localizada no bairro. Na ação de busca e apreensão, foram encontrados na casa de Belém, hoje licenciada, maços de notas que totalizaram 1,7 milhão de reais, uma fortuna escondida em meio a pacotes de roupas de grife. A ex-delegada, que foi candidata a vereadora pelo PSC, atualmente trabalha como assessora na Secretaria de Esportes da prefeitura do Rio e tem quase 200 mil seguidores no Instagram, onde posta fotos com amigos artistas e jogadores de futebol. Acabou presa. Outro ex-delegado, Marcos Cipriano, que também participou das negociações com Lessa, foi encarcerado. Ambos haviam prestado depoimento à Corregedoria da Polícia Civil em agosto de 2021, no qual negaram o encontro com Lessa e qualquer ligação com a máfia dos caça-níqueis.
Além de Rogério e seu filho e de Lessa e os ex-delegados, outras 25 pessoas são alvo da Operação Calígula. Segundo o MP, o grupo criminoso “estabeleceu acertos de corrupção estáveis com agentes públicos de diversas esferas do estado, principalmente na Polícia Civil e na Polícia Militar”. A Procuradoria ressalta que a organização chefiada por Andrade “exerce domínio em diversas localidades há décadas, explorando a habitual e permanente corrupção de agentes públicos e o emprego de violência contra concorrentes e desafetos”. Tal modus operandi, conclui a investigação, torna o grupo “suspeito da prática de diversos homicídios”.
No Rio, é difícil desassociar as muitas modalidades criminosas, sobretudo no que diz respeito às relações entre a contravenção, as milícias e os grupos de extermínio. Em fevereiro, o MP vazou áudios que comprovam a atuação do sargento reformado da PM Márcio Araújo como “chefe da segurança” de Rogério Andrade e uma espécie de “agente” que recrutava policiais para serviços pontuais ao contraventor. Ele está preso há um ano, apontado como o responsável pela contratação dos sicários que em 2020 executaram, à luz do dia, o grande inimigo de Rogério na guerra que sacode o submundo carioca desde 1997: o também bicheiro Fernando Iggnácio.
Genro de Castor e rival de Rogério na disputa pelo espólio do chefão, Iggnácio era outro que há anos mantinha seu exército pessoal dentro das polícias do Rio. Ele é apontado como mandante do atentado à bomba que em 2010 matou o filho mais novo de Rogério, com apenas 17 anos, selando o ódio mútuo entre as facções da contravenção. Meses antes, um artefato havia causado outra explosão endereçada a Rogério. Nela, Lessa, então segurança do bicheiro, perdeu a perna e passou a usar a prótese que ajudou a identificá-lo na morte da vereadora e seu motorista.
Por isso, a Operação Calígula reacende a esperança de jogar luz sobre os mandantes do duplo assassinato. O MP tem uma linha de investigação que apura a ligação de Andrade com o crime, embora não seja considerado que ele tenha sido o mandante. Segundo uma fonte na procuradoria, o que se investiga é a “carta branca” que o contraventor deu a Lessa, em 2018, para expandir “de qualquer maneira” os territórios ocupados pelas máquinas: “Esse salvo-conduto levou a uma ampliação das atividades das milícias e dos grupos de extermínio. É possível que esteja na raiz do atentado contra Marielle. Agora é preciso ouvir Lessa novamente”.
Outra ponta em aberto é a ligação entre Lessa e o ex-policial Adriano da Nóbrega, o Capitão Adriano, miliciano e chefe do grupo de extermínio Escritório do Crime morto pela polícia na Bahia, em 2020. Nóbrega, que já teve parentes nomeados no gabinete de Flávio Bolsonaro, seria o elo dos grupos de extermínio com a política. As ligações entre Lessa e Jair Bolsonaro, de quem era vizinho em um condomínio na Barra, também não foram esclarecidas.
Para a vereadora Monica Benicio, viúva de Marielle, é fundamental compartilhar os dados obtidos pelos investigadores e ouvir novamente o executor do assassinato: “Lessa é uma peça-chave para chegar aos mandantes desse crime. Foram apreendidos numerosos documentos. Espero que, assim como a investigação sobre o assassinato de Marielle forneceu provas para a Operação Calígula, as apreensões de hoje possam fornecer provas para chegar aos mandantes do assassinato de Marielle”.
O MP não acredita que Andrade tenha mandado matar Marielle, mas suspeita que ele deu “carta branca” para Lessa
Sobrevivente dos disparos vindos da arma de Lessa, dos quais escapou ilesa, a jornalista Fernanda Chaves diz que a operação confirma o “nível absurdo do comprometimento” de figuras que deveriam ser responsáveis por garantir a segurança. “É justamente esse nível de envolvimento que explica a demora na resposta sobre quem mandou matar a Marielle e só confirma o cunho político desse atentado.” Para a jornalista, uma coisa fica cada vez mais clara: “Todos esses atores – criminosos, milicianos, bicheiros e agentes corrompidos – se encontram dentro de uma mesma bolha de vinculações políticas. É preciso incidir sobre isso”.
Pré-candidato ao governo estadual pelo PSB, o deputado federal Marcelo Freixo afirma que “combater o crime de forma eficiente não é prioridade no Rio” e lembra que, em 2008, a CPI das Milícias resultou na prisão de “mais de 200 bandidos, incluindo todos os chefes”. Na ocasião, foram elencadas 58 medidas para o governo enfrentar o crime organizado, mas nenhuma foi adotada. “É preciso neutralizar o braço econômico, baseado na exploração de quem vive no território dominado, e o braço político, que mantém a ligação institucional do crime com o sistema político. É isso que garante a reprodução do poder das quadrilhas.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1208 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE MAIO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Um fio de esperança”
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