Justiça
Togados e armados
O Tribunal de Justiça gaúcho abre uma consulta para adquirir armas de fogo aos seus magistrados


O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul parece disposto a abraçar a política de incentivo ao uso de armas liderada por Jair Bolsonaro. Desde 2019, o governo federal emitiu 19 decretos, 17 portarias, duas resoluções, três instruções normativas e dois projetos de lei que flexibilizaram as regras para o acesso a armas e munições. Agora, uma medida em estudo pelo TJ gaúcho prevê a distribuição de pistolas aos seus magistrados. Até o momento, somente a marca foi escolhida: a Glock, de fabricação austríaca, calibre 9 mm, modelo Luger G26 GEN5, semiautomática com dez tiros. De acordo com a fabricante, ela é adotada pelo FBI dos EUA, pela Polícia Federal e por numerosas corporações policiais no País. O preço, conforme anúncios na internet, gira em torno de 15 mil reais a unidade. A aquisição será feita com recursos públicos.
O desembargador Antônio Vinícius Amaro da Silveira, vice-presidente do TJ e presidente da Comissão de Segurança e do Conselho de Comunicação Social, justifica a medida como forma de atender à Política Nacional de Segurança do Poder Judiciário, instituída pelo Conselho Nacional de Justiça por meio da Resolução 435, de 2021, a estabelecer normas sobre o uso de armas de fogo para juízes em situação de risco. “O crime organizado tenta cada vez mais desrespeitar os poderes constituídos”, reitera Silveira. No capítulo VI do documento, está prevista a “disponibilização de armas de fogo para magistrados, inspetores e agentes da polícia judicial, conforme a legislação vigente”.
O desembargador reconhece que, no estado, “não há um caso conhecido de assassinato ou atentado contra juízes”, apenas registros de situações que foram neutralizadas pelo serviço de inteligência institucional. No entanto, acrescenta Silveira, a eficácia na segurança dos magistrados, assim como em qualquer poder constituído, está no uso de medidas preventivas. “Não esperaríamos atentados para adotar ações efetivas.”
O processo de consultas aos juízes para saber do interesse no porte e uso da arma está em sua fase final e o porcentual de aceitação, até o momento, “é bem baixo”. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul é integrado por 170 desembargadores e cerca de 600 juízes distribuídos em 165 comarcas em entrâncias iniciais, intermediárias e finais.
“Trata-se de um gasto público em segurança dos magistrados sem amparo em evidências. Nada na literatura especializada e nos estudos mais consistentes sustenta a noção de que pessoas armadas sejam menos vulneráveis. Pelo contrário, algumas evidências sugerem que a posse de armas pode constituir um atrativo para crimes patrimoniais”, alerta Marcos Rolim, doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e especialista em Segurança Pública pela Universidade de Oxford, no Reino Unido. Embora reconheça que alguns juízes estão expostos a riscos, Rolim defende que, nestes casos, a solução deve ser requisitar às polícias e ao próprio Poder Judiciário o auxílio de um sistema de inteligência.
A ideia é oferecer uma pistola Glock, calibre 9 mm, a cada juiz que desejar o porte
Com a radicalização dos grupos de extrema-direita no Brasil, os magistrados tornaram-se alvos recorrentes de ameaças, a exemplo do ocorrido com ministros do Supremo Tribunal Federal, pondera Rolim. “Seja como for”, acrescenta o autor do livro A Formação de Jovens Violentos: Estudo Sobre a Etiologia da Violência Extrema, “os magistrados da Suprema Corte não enfrentam tais ameaças com armas de uso pessoal.”
De 2011 a 2013, ao menos 199 juízes sofreram ameaças de morte em todo o País, sobretudo nos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, revela um levantamento divulgado pelo CNJ à época. “Essas intimidações estão mais presentes nos casos de magistrados que enfrentam milícias ou confrontam facções ligadas ao tráfico de drogas.” Há, ainda, casos de integrantes do Poder Judiciário que vivem sob proteção policial há mais de uma década e de atentados consumados, a exemplo da execução da juíza Patrícia Acioli por milicianos cariocas em 2011. “É importante reforçar a segurança dos fóruns, pois, em várias regiões, é relativamente simples atentar contra a vida de um juiz ou promotor em seu ambiente de trabalho”, diz Rolim. “Mas o porte não é solução. Não existem indústrias de armas para bandidos. Todas as que eles usam um dia foram vendidas legalmente.”
Ariel de Castro Alves, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais e integrante do Movimento Nacional dos Direitos Humanos, também discorda da medida. Trata-se, nas palavras do advogado, de um “péssimo exemplo”, pois os magistrados deveriam respeitar o Estatuto do Desarmamento. “Caso seguissem estas normas, que visam à paz social e à menor circulação de armas na sociedade, o Tribunal de Justiça estaria estimulando ações pacificadoras em favor do desarmamento, inclusive para receberem menos processos nas Varas e Câmaras Criminais.”
Alves insiste que o CNJ deveria instaurar um procedimento para analisar a medida, uma vez que ela se configura em uma clara incitação ao armamento civil. “Mais armas em circulação sempre resultam em mais violência, atestam vários estudos. As principais vítimas de uma sociedade armada são as mulheres e as crianças, em razão de agressões e acidentes.”
Dados recém-divulgados pela Secretaria de Segurança Pública mostram que, de fato, o feminicídio cresceu no estado. Em julho último, o aumento foi de 11,1% em relação ao mesmo mês de 2021. No cenário acumulado entre janeiro e julho deste ano, 68 mulheres foram assassinadas, o que representa alta de 17,2% na comparação com o mesmo período do ano anterior. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o gaúcho é o “cidadão” mais armado do País. Em 2021, foram 109,3 mil registros ativos, crescimento de 27% comparado a 2020. O estado de São Paulo, com população quatro vezes maior, tem 54,9 mil. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1225 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Togados e armados”
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