Justiça

Superpedido de impeachment é sólido e aponta crimes de Bolsonaro, diz jurista

Cientista política alerta, no entanto, que a abertura do processo depende mais do arranjo partidário

A deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) foi uma das integrantes do super pedido de impeachment, que envolveu parlamentares da direita à esquerda. Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados
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É longa a lista de transgressões à lei apontadas no superpedido de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro, apresentado nesta quarta-feira 30, na Câmara dos Deputados. Das 57 atitudes criminosas previstas na Lei do Impeachment, os signatários, que vão da direita à esquerda, enquadram Bolsonaro em 23 práticas delituosas, separadas em 7 categorias. O texto reuniu as principais queixas já relatadas nos mais de 100 pedidos protocolados na Câmara – e até agora ignorados por Arthur Lira (PP-AL), presidente da Casa.

 

A avaliação geral é de que a pressão contra o Palácio do Planalto aumentou depois das notícias de possíveis atos de corrupção na compra de vacinas. No próximo sábado 3, a expectativa da oposição é de que as manifestações populares reúnam ainda mais participantes que os atos de 29 de maio e 19 de junho.

Resta saber, porém, se esses esforços serão capazes de mover moinhos contra Bolsonaro.

Débora Gershon, cientista política do Observatório do Legislativo Brasileiro, diz que um pedido de impeachment pluripartidário não é trivial e representa um enorme mecanismo de pressão sobre o governo. Ainda assim, não expressa necessariamente amplo apoio partidário.

A professora observa que a maior parte das legendas que assinam o pedido é sistematicamente da oposição ou tem mudado recentemente o seu comportamento na Câmara. Isso não inclui siglas estruturantes da política brasileira, como MDB, PSDB e PSD, por exemplo. Os deputados Alexandre Frota (PSDB-SP), Kim Kataguiri (DEM-SP) e Joice Hasselmann (PSL-SP) são pouco representativos nesses setores e não contam com apoio partidário explícito.

Além disso, a pesquisadora afirma que todos os pedidos já apresentados têm sustentações robustas contra Bolsonaro, e o superpedido, na verdade, reproduz a argumentação que já foi exposta. Não se trata, portanto, de haver ou não qualidade jurídica no texto, mas do arranjo político que se constrói em torno dele. Nessa equação, é preciso levar em conta que o presidente da Câmara tem assumido um papel absolutamente monocrático na análise desses processos, e Lira tem sido resistente a ceder.

“Um superpedido hoje certamente pressiona Arthur Lira mais do que ontem, mas a conta do apoio ainda não fecha para que ele faça uma brusca mudança de direção”, diz a especialista a CartaCapital.

Mauro Menezes, da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, avalia que a costura do texto potencializa a “sistematização lógica” do cometimento dos crimes. Isso quer dizer que, ao aglutinar as argumentações, o documento aponta coincidências, repetições e pontos de contato entre práticas antes descritas separadamente.

Menezes, que coordenou a redação, ressalta que a nota distintiva do pedido reside na espontaneidade de diferentes forças políticas de confiar em uma iniciativa unânime. Para além dos deputados de orientações ideológicas diversas, há a representação de diferentes categorias profissionais, como artistas, cientistas, ambientalistas, de instituições religiosas e de entidades de setores sociais como a população negra, as mulheres e a comunidade LGBTQIA+.

“De acordo com a Lei de Impeachment, é possível, sim, proceder uma construção lógica que demonstra crimes de responsabilidade”, afirma o jurista. “O nosso papel, como advogados, foi justamente demonstrar que essas condutas extravagantes e que desprezam as políticas de Estado são, do ponto de vista jurídico, crimes de responsabilidade.”

Confira, a seguir, a sustentação do jurista para as 7 categorias de crimes nas quais Bolsonaro foi enquadrado.

Crimes contra a existência da União

Mauro Menezes: Nós temos, por parte do presidente da República, a desconstrução da política externa brasileira, ou seja, de toda a elaboração por décadas de uma política externa autônoma, que fazia com que o Brasil tivesse voz no plano das relações internacionais, se articulasse com outros países de interesse semelhante. Além disso, é preciso dizer que a integridade da União foi afetada com medidas que colocaram em risco a soberania nacional. O comportamento do presidente caminhou no sentido de fazer pouco caso das relações diplomáticas, atendendo a diretrizes voluntaristas e erráticas.

Crimes contra o livre exercício dos Poderes

MM: É uma das mais importantes categorias. O presidente estimulou manifestações espúrias e antidemocráticas que pediam o fechamento do Supremo Tribunal Federal, constrangendo magistrados, e a destituição do então presidente da Câmara. Por várias vezes, o presidente se manifestou nesse sentido: com inconformidade pelo exercício regular das funções do Poder Judiciário e com transgressão contra o livre exercício do Poder Legislativo. A questão do respeito às instâncias federativas, aos estados e municípios, também foi uma tônica. O presidente, a todo tempo, procura estabelecer tensionamentos na relação com os estados e municípios, questionando a esfera de autonomia desses entes da federação para impor medidas em prol da população. No contexto da pandemia, o presidente se manifestou sempre contra medidas tutelares, o que revela um atentado à própria forma federativa de organização do Estado brasileiro.

Crimes contra o exercício dos direitos políticos

MM: Nós temos um abuso de poder do presidente e de seus ministros que tem desconstruído todo um estoque de direitos longamente conquistados em vários campos. É simbólica aquela declaração sobre a passada da boiada, no sentido de estabelecer uma atuação deliberada, desconstrutiva de políticas públicas, construída passo a passo ao longo de décadas no País. O Executivo desarticula as estruturas estatais, nomeando pessoas com o intuito de promover políticas contra os propósitos das instituições. Veja o caso da Fundação Palmares: o dirigente tem como objetivo desconstruir as políticas afirmativas e de valorização da cultura e da memória da população negra. Isso acontece no meio ambiente, nos direitos humanos, no trabalho, assim por diante. Essas transgressões chegaram ao ponto do flerte do presidente com a anarquia militar, contra os regulamentos dos quartéis, fomentando a participação política e obtendo o apoio de militares da ativa em função de ocupação de cargos de natureza civil.

Crimes contra a segurança interna

MM: O presidente, irresponsavelmente, atuou pelo desencorajamento das medidas de distanciamento social e do uso de máscara facial. Atuou pelo fomento para que as pessoas acudissem a tratamentos sem eficácia científica comprovada para a Covid-19, em detrimento das vacinas, pelas quais o presidente mostrou absoluto menosprezo e ficou inerte ante a necessidade premente, desde o ano passado, da celebração de contratos. A segurança interna dos cidadãos brasileiros foi objeto de um vil menosprezo por parte do presidente. A pandemia mostra o desastre que a postura presidencial implicou. Temos mais de 500 mil mortes. O atentado ao bem-estar e à proteção da saúde dos brasileiros cobrou um preço muito alto.

Crimes contra a probidade na administração

MM: Pesam suspeitas, lastreadas em indícios, de que ele teria agido com leniência, sendo portanto omisso, tendo agido de maneira a ser conivente com a insistência de transações que violavam o interesse público. Até que ponto o beneplácito presidencial aconteceu será objeto até de uma apuração no processo de impeachment, que também é um processo instrutório, que envolve testemunhas e busca de provas. Há uma atuação deletéria do presidente da República em relação à probidade, até porque, desde o ano passado, a utilização das instituições de Estado para proveito pessoal foi algo que ficou absolutamente manifesto, como na Polícia Federal, na Agência Brasileira de Investigação. Instituições que foram utilizadas para blindar a própria família do presidente. Esses fatores demonstram conduta contrária à luz da Lei de Impeachment.

Crime contra o cumprimento de decisões judiciárias

MM: Temos também resistência do presidente ao cumprimento de decisões judiciárias. Ele chegou a afrontar o Supremo Tribunal Federal, sem falar em decisões de cortes internacionais, relacionadas a questões indígenas. Tivemos até mesmo no âmbito do STF a necessidade de reiteração de várias decisões para proteger os povos originários em relação ao contágio da pandemia. E o governo se recusava sistematicamente a cumprir essas decisões.

Crimes contra a guarda e legal emprego do dinheiro público

MM: Temos uma negligência evidenciada com a compra de medicamentos sem eficácia comprovada, a não-utilização das verbas vinculadas ao combate à pandemia na medida em que o orçamento assim determinava. Foram crimes que decorreram do mau uso das verbas públicas. Isso também encontra, na Lei de Impeachment, uma previsão específica.

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