Justiça

‘Sergio Moro’ do Meio Ambiente: força-tarefa pede a saída de juiz do caso Samarco

Mário de Paula Franco Jr é apontado como parcial na condução de processos relativos à reparação do maior desastre socioambiental do País

O juiz Mario de Paula Franco Junior. Foto Reprodução
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por Naiana Andrade e Elisangela Colodeti, de Belo Horizonte

Pescador e agricultor, Milton José dos Santos, aos 56 anos, é analfabeto. Sempre morou à beira da foz do Rio Doce, no distrito de Regência, em Linhares, no Espírito Santo. Depois do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), em 2015, perdeu o rumo. O rio que garantia seu sustento virou passagem de rejeito, a plantação de cacau e banana acabou e os filhos foram buscar trabalho em outras terras. Cinco anos depois, Milton já não sabe a quem recorrer. “A gente é simples, não tem estudo. O pessoal das mineradoras vêm aqui, mas eu não consigo entender o que eles falam, muito menos o que está nos documentos”.

Uma solução acessível e rápida é tudo o que Milton e outras vítimas da tragédia buscam. Com a intenção de facilitar e agilizar o processo de recebimento das indenizações, o juiz Mário de Paula Franco Júnior, da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte, teria criado o ‘Sistema Indenizatório Simplificado’. Outras autoridades, entretanto, veem ali um esquema que, na verdade, favoreceria as mineradoras responsáveis pelo rompimento: Samarco, Vale e BHP.

Nas redes sociais, o magistrado chegou a se comparar ao ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sergio Moro. “Sentado no meu gabinete, presidindo talvez a ação cível mais importante do país. Se na seara criminal nós temos a lava-jato, sem sombra de dúvidas o caso mais importante do país, na seara cível nós temos o caso Samarco. Eu brinco às vezes que o colega Sérgio Moro e eu estamos só trocando de área: ele na área criminal e eu na área cível ”.

No dia 23 deste mês, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu reconhecer a parcialidade de Moro na condução dos processos que envolvem o ex-presidente Luiz Inácio Lula Silva na Operação Lava-Jato. Agora, o juiz de Minas Gerais enfrenta a mesma acusação.

Acordos desvantajosos

Em pelo menos 30 cidades da Bacia do Rio Doce foram formadas, com autorização do juiz Mário de Paula, comissões compostas por vítimas e advogados, contratados para representá-las em ações indenizatórias diretamente com a Fundação Renova, instituição criada pelas mineradoras para reparar os danos causados pelo rompimento da barragem. Como pagamento, os advogados ficavam com parte do valor da indenização e as mineradoras eram liberadas para participar de negociações. Tudo sem o consentimento da força-tarefa formada pelo Ministério Público Federal, o Ministério Público de Minas Gerais e Defensoria Pública Federal e Estadual de Minas Gerais e do Espírito Santo.

Segundo a defensora pública capixaba Mariana Andrade Sobral, na prática, nessas reuniões, as vítimas acabavam fazendo acordos desvantajosos, abrindo mão de direitos que já estavam sendo negociados coletivamente pelas Instituições de Justiça.

“Aceitar o novo modelo implica em quitação definitiva de qualquer indenização em aberto, inclusive do Auxílio Emergencial. A pessoa também precisa abrir mão de eventuais processos judiciais no Brasil e no exterior e concordar com o fechamento do cadastro de novos atingidos”, explica.

O sistema é facilitado pela Fundação Renova, que oferece um formulário on-line para requerimento de indenização.

A primeira comissão foi criada em 23 de abril do ano passado, com o nome “Comissão de Atingidos de Baixo Guandu”, com a ata de formação registrada em cartório. Nove pessoas faziam parte do grupo, que tinha representação de uma advogada. Segundo a Ação Civil Pública, para o juiz Mário de Paula, essa Comissão, assim como outras, tinha o poder extraordinário de representar os interesses dos atingidos de toda a cidade, mesmo que nem todos participassem dos encontros.

A realização de sucessivas reuniões informais com lideranças atingidas, sem a presença das instituições de Justiça, foi confirmada em um depoimento colhido pelo Ministério Público Federal em 18 de março. Segundo o documento, a testemunha informou que o juiz teria sugerido a adesão dos participantes ao seu ”sistema indenizatório simplificado sob pena de possível atraso no processo que seria julgado por ele”.

Fonte: Arguição suspeição assinada – PR-MG -Número: 1016756-84.2019.4.01.3800 – Num. 493730364 – Pág. 12.

Em uma dessas reuniões, em 16 de abril de 2020, cuja gravação foi obtida?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> pelo site Observatório da Mineração, o juiz orienta os advogados a convencer os atingidos a aderirem a seu sistema. No entanto, de acordo com o artigo 145 do Código de Processo Civil, inciso II, é proibido a um juiz “aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa”.

Vítimas sem reparação

Ainda segundo a defensora pública Mariana Andrade Sobral, mesmo vítimas que sequer têm conhecimento do sistema podem ser prejudicadas.

“Por mais que haja uma facilitação de entrada por essa porta, com diminuição de documentos, há uma limitação de valores. Isso é bom para as empresas, tanto que elas não recorrem das decisões. Essa falsa sensação de que as mineradoras estão cumprindo seu papel na reparação deixa diversas pessoas totalmente excluídas de qualquer tipo de reparação: econômica, ambiental, social ou de saúde.”

Esse pode ser o caso da lavadeira Delcina Pereira Lima, de 73 anos, cujo pedido de socorro foi parar em Hamburgo, na Alemanha. A aposentada mora com o marido em Tumiritinga, às margens do Rio Doce, no distrito de Governador Valadares (MG). Ela ligou para contar a um casal de amigos, que vive do outro lado do mundo, o seu sofrimento: há mais de três meses apresenta feridas espalhadas por todo corpo, já não enxerga mais e ouve com dificuldade.

Fotos: Thomas Byczkowski

Delcina conheceu a brasileira Stella Negraes e o marido dela, o fotógrafo alemão Thomas Byczowski, entre julho e agosto de 2020, em meio à pandemia da Covid-19. O casal trabalhava em um projeto com apoio das instituições alemãs Misereor e Brot Für Die Welf, para registrar, por meio de fotografias, a realidade de ribeirinhos vítimas do rompimento da Barragem do Fundão, em 2015.

Acolhedora, Delcina abriu as portas de sua casa para que os dois se hospedassem durante o trabalho. Daí nasceu a amizade. Boa parte da rotina de Delcina na lida na roça foi registrada pelo fotógrafo, antes do aparecimento das feridas. “É uma pessoa muito querida, ama os animais, cria calopsitas e galinhas. Mas não usa a água do rio para nada, mesmo vivendo tão perto dele”, lembra.

Desde que as feridas surgiram, Delcina passou a usar a água mineral vendida em galões. “Toda semana são três ou quatro só para tomar banho, fora o que uso para a fazer comida”, conta. “Quem dá água do Rio Doce para o gado perde a criação, não ‘vingam’, morrem todos, e as galinhas que bebem dessa mesma água, ficam fracas, não engordam.”

Apesar de se considerar vítima do desastre, dona Delcina não recebeu nenhum tipo de recurso por parte da Renova. “O mais frustrante é que Delcina chegou a receber o cartão dos benefícios, mas mandaram uma carta dizendo que ela não tinha direito. Desde então, ela luta de todas as formas por esse reconhecimento”, conta Stella.

Alguns exames feitos por Delcina sugerem que ela sofre de Pênfigo Vulgar, uma enfermidade autoimune, possivelmente desencadeada pelo contato com metais pesados, como o zinco. “Eu já fui em vários médicos, paguei por vários exames, mas nenhum especialista teve a coragem de fazer algum laudo que comprovasse uma possível relação, que acho que existe, entre a água do Rio Doce e a doença que devora minha pele. Hoje, vivo a base de remédios. É muita dor, muita tristeza. Assim como eu, outras pessoas podem estar sofrendo”, lamenta.

Vícios processuais

A ação contra o magistrado Mário de Paula aponta para vícios processuais na criação do Sistema Indenizatório Simplificado, além de uma nítida “relação processual entre juiz, empresas rés, as novas ‘comissões de Atingidos’ e seus advogados”.

Baseados nessa e em outras condutas, os integrantes da força-tarefa pedem que seja determinado, em caráter provisório, o afastamento “com a designação provisória de outro juiz federal para dar andamento a todas as providências atualmente pendentes, de modo a não fazer recair sobre a população mineira e capixaba o ônus do tempo necessário para o processamento do presente pleito”.

Quem decide se acolhe ou não o pedido de afastamento, entretanto, é o próprio juiz sob suspeita. Caso ele não se considere suspeito, a ação vai, segundo especialistas ouvidos pela reportagem, para análise do TRF-1 (Tribunal Regional Federal).

No dia 24 do mês passado, o Ministério Público de Minas Gerais pediu a extinção da Fundação Renova por não cumprir com as suas obrigações e por prejudicar os programas acordados no Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC).

Com a palavra, a Fundação Renova

A Fundação Renova é responsável pela mobilização para a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, cujo escopo engloba 42 programas que se desdobram nos projetos que estão sendo implementados nos 670 quilômetros de área impactada ao longo do rio Doce e afluentes e em ações de longo prazo. Cerca de R$ 12,2 bilhões foram desembolsados pela Fundação Renova até o momento, tendo sido pagos R$ 3,46 bilhões em indenizações e auxílios financeiros para 320 mil pessoas até fevereiro deste ano.

As indenizações ganharam novo impulso com o Sistema Indenizatório Simplificado, implementado pela Fundação Renova a partir de decisão da 12ª Vara Federal em ações apresentadas por Comissões de Atingidos dos municípios impactados. Ele tem possibilitado o pagamento de indenização a categorias com dificuldade de comprovação de danos. O primeiro pagamento por meio do sistema foi realizado em setembro de 2020. Em março de 2021, o total de pessoas indenizadas chegou a 10 mil, e o montante é de cerca de R$ 900 milhões. Os valores das indenizações, definidos pela Justiça, com quitação única e definitiva, variam de R$ 17 mil a R$ 567 mil de acordo com a categoria do dano. Até o momento, 22 localidades aderiram ao Sistema.

Reparação

A água do rio Doce pode ser consumida após passar por tratamento convencional nos sistemas públicos de abastecimento de água. É o que indicam os mais de 1,5 milhão de dados gerados anualmente por um dos maiores sistemas de monitoramento de cursos d’água do Brasil. Desde 2017, a bacia do rio Doce tem pontos de monitoramento e estações automáticas que permitem acompanhar, ao longo do tempo, sua recuperação e gerar subsídios para as ações de reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão.

Os dados estão disponíveis no portal monitoramento Rio Doce, em forma de gráficos e mapas, sendo possível fazer o download das informações em planilhas. A plataforma é um projeto do Programa de Monitoramento Quali-Qualitativo Sistemático de Água e Sedimento (PMQQS) conduzido pela Fundação Renova sob orientação e supervisão do Grupo Técnico de Acompanhamento (GTA-PMQQS).

Além disso, foram recuperados 113 afluentes, pequenos rios que alimentam o alto rio Doce. Aproximadamente 890 nascentes estão com o processo de recuperação iniciado. Até o momento, as ações de restauração florestal alcançam mais de 1.000 hectares em Minas Gerais e no Espírito Santo, uma área equivalente a 1.000 campos de futebol.

Na área de saneamento, 9 municípios iniciaram obras para tratamento de esgoto e resíduos sólidos com recursos repassados pela Fundação Renova. Estão previstos R$ 600 milhões para projetos nos 39 municípios impactados.

Em 2020, a Fundação iniciou um repasse de R$ 830 milhões aos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo e prefeituras da bacia do rio Doce, para investimentos em infraestrutura, saúde e educação. Esses recursos promoverão a reestruturação de mais de 150 quilômetros de estradas, de cerca de 900 escolas em 39 municípios e do Hospital Regional de Governador Valadares (MG), além de possibilitar a implantação do Distrito Industrial de Rio Doce (MG).

Rejeitos

Mais de 80 especialistas foram reunidos pela Fundação Renova para desenvolver os Planos de Manejo de Rejeitos. A região atingida abrange 670 km de cursos d’água e foi dividida em 17 trechos. Ações e técnicas adequadas foram definidas para a reparação de cada um deles, a partir dos indicadores específicos, como volume, espessura e características do rejeito, além das condições do meio ambiente. Até o momento, foram definidas as ações para os trechos que correspondem ao traçado de Mariana até a divisa de Barra Longa.
O rejeito não é tóxico. Contém elementos que ocorrem naturalmente no solo (rico em ferro, manganês e alumínio), areia (sílica) e água. O sedimento foi caracterizado como não perigoso em todas as amostras, segundo critérios da norma brasileira de classificação de resíduos sólidos.

Diálogo

A Fundação Renova tem a escuta, o diálogo e a participação social como práticas norteadoras de suas ações junto às comunidades atingidas. As ações de engajamento são fundamentais para a construção do caminho conjunto.

A Fundação Renova disponibiliza canais permanentes de comunicação e interação com a sociedade por meio de espaços fixos, virtuais e central 0800. Ela trabalha para assegurar que as respostas sejam dadas no prazo estabelecido, em linguagem acessível, adequada e compreensível às partes interessadas.

Até fevereiro de 2021:

· Mais de 116 mil pessoas participaram de reuniões com a Fundação Renova.

· Mais de 4 mil reuniões de diálogo coletivo realizadas – cerca de 90 profissionais dedicados.

· Mais de 500 chamadas do 0800 recebidas por dia.

· 17 centros de atendimento presencial na região impactada.

· Mais de 300 profissionais envolvidos nos canais permanentes de interação com a sociedade.

· 10.508 manifestações registradas na Ouvidoria – 95,12% concluídas.

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