Justiça

Quando brancos dizendo sofrer preconceito deixa de ser graça

Injúria racial e racismo não são a mesma coisa, caso você esteja perguntando se isso é possível

"Branca encardida": patroa processa empregada doméstica por racismo. Foto: Reprodução/Facebook.
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Uma mulher branca está processando sua empregada por injúria racial. É isso mesmo que você leu. Mas eu repito pra vocês: uma mulher branca está processando sua empregada por injúria racial. A empregada a teria chamado de encardida.

Injúria racial e racismo não são a mesma coisa, caso você esteja fazendo cara de Nazaré Tedesco e se questionando se isso é possível.

Para mim, esta é uma arapuca do equívoco da judicialização das demandas por direitos civis. A grosso modo, a injúria racial se estabelece no âmbito da individualização, do conhecido “preconceito”, sendo um crime contra a honra e à dignidade ao se utilizar de elementos como raça e cor. Já o racismo se estabelece a partir de variadas práticas discriminatórias que se dirigem para um grupo, se utilizando daí de sua cor, nacionalidade ou raça. Por exemplo se alguém te impede de frequentar algum lugar ou pede que você se retire porque você é negro. Essa prática discriminatória se estenderia de você para todo o seu grupo social, daí, então o racismo se configura.

Essa diferenciação nas tipificações criminalizatórias, para mim, são a expressão mais acabada de como Beatriz Nascimento definia o racismo brasileiro: “um emaranhado de sutilezas”. Ao estabelecer a injúria racial, individualizando a prática – não deixando escuro que a questão racial no Brasil é atravessada pelas consequências da escravidão, da negação do negro como sujeito político e social – e, falando o óbvio, levarmos em conta um país que se nega racista, se enganando sobre uma miscigenação romantizada, nada será racismo. Tudo será injúria.

E ao jogar tudo para o campo do preconceito, da moralidade, o que temos é o caldo perfeito para que brancos “espertos” falem em ideias esdrúxulas como a de “Racismo reverso” ou “preconceito de negros contra brancos”, como se, este último, tivesse o mesmo peso comparativo entre brancos e negros. Como se ser chamada de “encardida” fosse o equivalente a ser chamada de “macaca” na sociedade em que mais de 60% de homens brancos dizem não querer ver suas filhas casadas com homens negros, quando questionados sobre isso; na sociedade em que 72% das vítimas de homicídios são negras.

 

Levar a questão dos direitos civis à seara jurídica, sem uma forte mobilização social e popular cotidiana, na disputa de valores, cultural, na formulação e execução de uma série de práticas anti-discriminatórias, esvazia potencialidades de transformações radicais e efetivas, desconsidera que o campo jurídico também tem cor, classe e gênero, e que o sistema de justiça criminal é ferramenta para o controle social e político.

Não estou dizendo para “jogarmos a água da bacia com a criança dentro” ou para simplesmente desistirmos do Direito. Mas estou dizendo que precisamos compreender a necessidade da transformação do Direito, que envolve a destruição de alguns dos seus braços.

Estou dizendo que precisamos ser mais equilibrados na relação de construção de marcos jurídicos e mobilização popular e ativismo cotidiano.

Estou dizendo que precisamos ser mais estratégicos e menos afobados quando alcançamos espaços legislativos, ou estamos tapando um buraco e abrindo o outro.

Estou dizendo que temos de ter um projeto político de poder, como intelectuais negras estão dizendo há décadas.

Estou retomando o alerta de Audre Lorde de que “as ferramentas do mestre nunca irão desmantelar a casa do mestre”.

Enquanto não tivermos escureza sobre isso, seguiremos vendo situações como essa: uma mulher branca processa sua empregada por injúria racial. E isso não é uma brincadeira.

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