Justiça

Prender, amontoar e (des)cumprir a Constituição

O discurso punitivista e a indignidade (política) tenderão a misturar-se com a química proposta por Brown e pronto: eis um novo detento.

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Desde a eleição de Jair Bolsonaro, especula-se quais direitos seriam afetados ou denegados pelo novo governo. Com a posse em 01 de Janeiro deste ano, o novo Presidente prometeu em seu discurso: “defender e cumprir a Constituição”, bem como “promover o bem-geral do povo brasileiro”.

Nesse sentido, cabe contextualizar um problema de caráter nacional, que afeta desde o fortalecimento das facções criminosas – estritamente ligadas à Segurança Pública – passando pelos gastos públicos, até às condições dos presos: o encarceramento em massa. Dentro desse tema, é importante destacar, a despeito de críticas e ideologizações, que a dignidade da pessoa humana é prevista como um dos fundamentos da República dispostos na Constituição Federal, documento que o novo Presidente se diz “escravo” [1].

Nesse contexto, ponto tangente que vem despertando a atenção da imprensa, do novo Ministro Sérgio Moro e dos integrantes do Supremo, é a execução provisória da pena. De caráter polêmico, o assunto repercute não só no âmbito jurídico, como também no político. Apesar disso, o atual chefe da pasta de Justiça e Segurança Pública sustenta [2] que “a presunção de inocência não deve ser interpretada como um véu de ignorância (…)”. Contudo, conforme a Carta Cidadã, tal instituto deve ser expressamente garantido. Outro fato a ser rememorado encontra-se na entrevista que o Super Ministro de Bolsonaro concedeu ao Roda Viva, quando afirmou: “ter esperança de que o precedente (do STF) não vá ser alterado” e defendeu, ainda, que “se o STF rever esse antecedente, temos de pensar em uma opção”. Na mesma entrevista, o ex-juiz alegou que a população poderia “cobrar dos candidatos a Presidente uma posição sobre corrupção” e finalizou o assunto destacando a possibilidade, caso o STF inverta a jurisprudência, de se “restabelecer a execução de pena por emenda constitucional”, complementando que tal atitude “não enfrentaria o Supremo Tribunal Federal”.

Em momento posterior, Moro, ao tomar posse como Ministro, defendeu que a execução provisória da pena “foi o mais importante avanço institucional dos últimos anos”. Afirmou também que pretende honrar tal avanço e “deixar mais claro na lei, como já decidiu diversas vezes o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), que, no processo criminal, a regra deve ser a da execução da condenação criminal após o julgamento da segunda instância”.

Ao se analisar o mérito da questão, nota-se que a visão individual dos Ministros da Suprema Corte se mostram contrárias aos argumentos de Sérgio Moro em relação à execução provisória da pena, de modo a existir o seguinte cenário: Carmem Lúcia, Luiz Fux, Edson Fachin e Alexandre de Moraes sendo pró-execução provisória; Celso de Mello, Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber [3] sendo contrários à execução provisória; Dias Toffoli e Gilmar Mendes defendendo a tese de execução após julgamento do Superior Tribunal de Justiça.

No cenário dessa discussão se a pena deve ser antecipada, ou não, é importante destacar a dura realidade do cárcere: como efetivar as garantias fundamentais e a dignidade da pessoa humana? Por que o Presidente e seu Super Ministro dizem se submeter à Constituição, mas, ao mesmo tempo, prometem prender mais gente? Mano Brown, em 1998, já falava disso na letra da canção Diário de um detento.

Ademais, segundo o que é apresentado no Relatório do Departamento Prisional Nacional, de Julho de 2016, há 726.712 presos e 368.049 vagas no Brasil, criando um déficit de 358.663 vagas. Seriam construídos mais presídios se, atualmente, nem os que existem dão conta do total de presos? E as medidas de austeridade aliadas à falta de recursos públicos?

Nota-se que o chefe de Moro também não parece preocupado com a repercussão do assunto. Prova disso é a declaração [4] feita por Bolsonaro, em relação ao Presídio de Pedrinhas, em 2015, onde presos foram decapitados: “a única coisa boa do Maranhão”. Na mesma entrevista se limitou a dizer com considerável superficialidade e raiva que “(…) é só você não estuprar, não sequestrar, não praticar latrocínio, que tu não vai parar lá (…)”.

Já no ano de 2018, após ser eleito, Bolsonaro sustentou em entrevista, ao ser questionado sobre os presídios, que “se você tiver recursos, amplia”. Argumentou, ainda, que “ninguém quer torturar ninguém dentro da cadeia, mas se não tiver recursos, amontoa”. Ao analisarmos pela ótica externa, tais frases proferidas pelo atual Presidente não parecem consonantes com as declarações de respeito e defesa da Constituição.

Em mesmo sentido, Sérgio Moro defendeu que o sistema prisional deve “deixar de ser leniente com os detentos” e acrescentou que deve haver “um endurecimento” para os crimes de extrema gravidade, os quais, na visão do Ministro que ficará responsável agora pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), as pessoas ficam poucos anos presas em regime fechado.

Outro ponto a se destacar é que as ideias defendidas por Bolsonaro e Moro contrariam, consideravelmente, alguns precedentes da Suprema Corte, tais como no Recurso Extraordinário (RE) 580252 [5], a ADPF 347 [6] e a visão geral dos Ministros sobre a execução provisória da pena [7].

O novo Presidente, em recente declaração, ao ser questionado sobre o fortalecimento de facções criminosas como consequência do aumento do encarceramento, foi claro ao dizer que deseja “acabar com as saídas temporárias e com a progressão de pena”, de modo a levantar outro potencial conflito com o STF no futuro. Dentro de tal tema, é relevante o apontamento do princípio da vedação ao retrocesso e da proteção dos direitos e garantias sob o guarda-chuva das cláusulas pétreas.

Leia também: O escândalo das relações entre doleiros e endinheirados

Como dito anteriormente, não poderemos afirmar como será o futuro, contudo, olhando para o passado, o discurso punitivista e a indignidade (política) tenderão a misturar-se com a química proposta por Brown e pronto: eis um novo detento.

Fábio Prudente Netto

[1] Conforme veiculado pelo jornal O Estado de São Paulo, no dia 13 de Outubro de 2018: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-diz-que-somos-escravos-da-constituicao-e-tentara-mudancas-via-emendas,70002546042

[2] Tal colocação foi extraída da sentença condenatória prolatada pelo próprio ex-juiz, em relação à execução da pena do ex-vice presidente da Engevix, Gerson de Mello Almada, enquanto juiz da Lava Jato.

[3] No julgamento do HC 152.752 (do ex-presidente Lula), a Ministra sustentou que “independentemente da posição pessoal defendia por ela quanto ao tema de fundo” não teria como reputar ilegal, abusivo ou teratológico, acórdão que, forte nesta compreensão do próprio Supremo Tribunal, rejeita a ordem de habeas corpus” (Voto do Min. Rosa Weber no Habeas Corpus 152.752. Rel. Min. Edson Fachin. Distrito Federal, 04 abr. 2018. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf
/anexo/HC152752votoRW.pdf>. Acesso em: 02 jan. 2019).

[4] Conforme apresentado em: https://videos.bol.uol.com.br/video/unica-coisa-boa-do-maranhao-e-o-presidio-de-pedrinhas-diz-bolsonaro-04020E183770D4C14326

[5] o RE estabeleceu que o Estado deve indenizar o presos em situações degradantes e a superlotação no sistema prisional tem direito à indenização danos morais. O valor é fixo de R$ 2 mil reais por condenado.

[6] a ADPF estabeleceu que o Estado deve tomar medidas com vistas à mudança da situação carcerária brasileira, a qual seria classificada “estado de coisa inconstitucional”. Nesse sentido, deve ser desenvolvida uma nova realidade para a execução penal brasileira e abranger todo o sistema.

[7] Já em relação à execução provisória da pena, como exposto anteriormente, sabe-se que a maioria da Corte, a despeito da não concessão do HC 152.752 (Caso do ex-Presidente Lula) e considerando o mérito da questão, ainda é favorável ao princípio consagrado na CF. Destaca-se, ainda, que Rosar Weber não entrou no mérito da questão no referido HC, de modo a reproduzir uma posição da Corte construída anteriormente e não sustentar seus argumentos sobre o cerne da questão.

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