Justiça

Oxóssi frente às opressões do sistema de justiça

Orixá caçador é quem traz a proteção para as chances únicas da(os) juristas negra(os) em uma floresta repleta de branquidade

Oxóssi frente às opressões do sistema de justiça
Oxóssi frente às opressões do sistema de justiça
Estátua de Mãe Stella de Oxóssi, em Salvador.
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O que seria uma concepção de justiça a partir dos orixás? A primeira resposta é de que não haveria uma concepção, mas variadas e complexas formas pensar o que é justo. As visões filosóficas de justiça hegemônicas geralmente baseiam-se em binarismos, ou seja, raciocínios excludentes e arquétipos monopolizadores: Thêmis, na mitologia grega, é a única deusa da justiça e este é conceito, além de humano, um tanto divinal.

A cosmopercepção da orixalidade costuma se fundamentar em lógicas duais, includentes, as quais não procuram se sobrepor, mas dialogar e completar-se: o xirê só é completo se a diversidade de todas/os se fizer presente. Dessa forma, conquanto Xangó seja visto como o orixá da justiça, esta não lhe é atributo exclusivo, pois os itãs evidenciam que todos os orixás estão, em algum momento, tratando de justiça e “levando seus direitos à sério”. Além do mais, como os orixás têm características humanas, a justiça não deve ser algo idealizado, mas fomentado a partir das realidades dos sujeitos que as vivenciam, em que pese regras evidentes que traduzem os interditos/proibições, as quais podem variar conforme a nação ou o ilê.

Mas como praticar justiça se o sistema que a valida não tem recepcionado pessoas negras na lógica do saber, poder e ser? No Brasil, talvez nenhum orixá sintetize melhor o papel do jurista negro do que Oxóssi. A síndrome do negro único é bem representativa disso: a pouca presença de juristas negros em cargos de relevância confirma o racismo estrutural, tão bem tratado por Silvio Almeida. O jurista negro, sozinho ou com raras companhias de caçada e justiça, como Oxóssi em uma floresta dominada pela branquidade do sistema jurídico, dispõe de poucas chances para acertar ou, na maioria das vezes, tem uma única chance, em algo que lembra a resposta correta de Ronald Dworkin, porém com esta não se confunde.

Aprendemos a silenciar como estratégia e não como servidão.

A calma e o exercício de observação são as maiores virtudes, ao permitir ouvir os sons dissimulados do racismo e injustiças. É também no silêncio que calcula a força e rota necessárias para atirar a única flecha de forma certeira para abater a grande ave das feiticeiras: o racismo do sistema de justiça. Como senhor de sua comunidade, Oxóssi sabe que as suas chances e de seu povo, em um sistema racista, são reduzidas cotidianamente, enquanto a violência contra esse mesmo povo cresce a cada sol que se põe ou nasce. Nem por isso esmorece, pois aprendeu através da paciência a perceber quando a floresta está propícia ou não para a caça.

Oxóssi não nasceu caçador (odé), foi ensinado a caçar pelo seu irmão Ogum, superando sua fragilidade e tornando-se exímio atirador: eis outra lição a qual podemos compreender a partir de sua orixalidade, podemos ser frágeis e o racismo do sistema de justiça, a todo momento, tenta demonstrar cinicamente que somos inferiores, subestimando nossa pele, cabelos, traços e poder decisório. Mas isso já não nos abala, pois o direito e a justiça não é algo dado, mas que devem ser construídos diariamente.

O poder da transformação está também em nós e o que nos dá forças para prosseguir com as caçadas diárias, lutas por justiça, é o vínculo com a nossa comunidade. Oxóssi nos permite a vaidade (tanto que se permitiu apaixonar por Oxum), mas esta nunca ultrapassa o afeto àqueles que dependem de nós. Se fomos ensinados a caçar e a lutar por justiça, tal capacidade não é sobre nós apenas, mas que diz respeito a toda comunidade.

Em um sistema de justiça que menospreza juristas negras/os, Oxóssi ensina que devemos continuar a adentrar na floresta que foi apropriada pela branquitude. Ainda somos poucos caçadores diante da dimensão de outros caçadores com muito mais armas. Contudo conhecemos a opressão da floresta racial por dentro, cada folha, árvore, víbora, riacho. Irmão de Exu, conhece cada encruzilhada, os caminhos das melhores caças e estratégia racializada da justiça brancocêntrica. Os outros caçadores que se apropriaram da floresta têm muitas armas, nossa humildade nos reconhece a aceitar isso, mas pouco sabem que a escassez de caças (justiça) se deve a exploração excessiva da floresta e dos seus recursos.

Oxóssi, em seu senso de justiça, sabe respeitar a mata, suas caças (jamais abateria uma caça com recém cria, o que evidencia o seu pragmatismo jurídico) e só lhe tira o que é suficiente e justo, e, por isso, sabe que o problema não está na floresta, mas nos abusos dos outros caçadores, que até riem de seu ofá e erukere, e que transformaram a mata em lugar de opressão. Oxóssi sabe de seu potencial, filho de Iemanjá, aprendeu a controlar seus medos e angústias. Os outros caçadores conhecem a potencialidade de Oxóssi, mas continuam a desprezá-la, mas ele, diante de sua responsabilidade, mantém-se firme apenas em levar a caça suficiente a sua comunidade, até o dia em que chegará a hora de abater o grande pássaro da injustiça e restabelecer a justiça à floresta. Okê Arô!

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