Justiça

Os sinos e o sistema de (in)justiça criminal

Seletiva, arcaica, preguiçosa, omissa, hipócrita e classista: são esses os atributos próprios da realidade da justiça criminal

Dias Toffoli, Presidente do STF e do CNJ. Foto: G.Dettmar/Agência CNJ Dias Toffoli, Presidente do STF e do CNJ. Foto: G.Dettmar/Agência CNJ
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O tom deste texto pode ser pessimista. A sua inspiração não se trata de um devaneio e tem eco na denúncia apresentada por José Saramago no Fórum Social Mundial de 2002 no texto Esse mundo da injustiça globalizada

De acordo com o laureado literato lusitano, um camponês florentino no século XVI decidiu se valer do meio de comunicação urbano de então para denunciar a morte da Justiça. Assim, em uma remota aldeia dobraram os sinos pelo perecimento de algo tão caro para aquela comunidade. Ainda segundo Saramago, o bronze não mais foi tocado, porém o fim desse valor persiste:

Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça.”

Sem o brilhantismo daquele que obteve o prêmio máximo de literatura, mas, tal como o indignado campesino, essas linhas são compostas pelas razões que me fazem não mais acreditar nesse estágio do sistema de (in)justiça criminal.

Ainda que localizado na periferia mundial, não se pode desprezar o fato de que o sistema de (in)justiça criminal brasileiro se encontra inserido no modo de produção capitalista. Longe do equívoco proporcionado por um determinismo econômico, que despreza a dialética relação estabelecida entre a infraestrutura e a superestrutura, o exame sobre esse ser que não se confia necessariamente não despreza a excessiva proteção conferida à propriedade privada. O fato de existirem mais tipos penais a proteger o patrimônio do que a vida é um indicativo de que o ter é mais protegido do que o ser.

Justamente como consequência dessa inserção, há de se apontar pra uma face dessa justiça criminal de classe: a seletividade na atuação das agências criminais. Não se trata da escolha de bens jurídicos, mas sim da forma como os processos de criminalização se sucedem. De um lado, há uma visível relutância na efetivação da bagatela para o crime de furto enquanto a impera a benevolência na sua aplicação diante dos crimes tributários.

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Apesar de o Texto Constitucional prescrever o primado da igualdade, é sabido que na (in)justiça criminal prevalece o ideário descrito de Orwell, ou seja, uns são mais iguais que outros e, assim, a cidadania conhece gradações que seguem a cor da pele, local de residência e extratos sociais.

O sistema de (in)justiça criminal é marcado pela junção da preguiça e do arcaísmo. Diante do fato da criminalidade chefe ser constituída pelos subcidadãos, não se investe na prova técnica e o desenvolvimento da persecução penal se dá quase que exclusivamente com base nos depoimentos de quem tem imediato interesse na condenação. A aferição de culpa se transforma em um jogo de memória, sendo certo que para a condenação basta a perfeita regurgitação de declarações prestadas no inquérito.

Não se pode confiar ainda na (in)justiça criminal, pois alguns atores jurídicos não suportam os seus papéis constitucionais e, dessa maneira, buscam a todo custo exercer a função de agentes responsáveis pela segurança pública. Em meio a um discurso com nítido coloração bélica em que o criminoso é concebido como inimigo, a liberdade ambulatória dos acusados passa a ser tida como uma bem jurídico de menor importância.

Mesmo sabendo que o cárcere não ressocializa, a (in)justiça criminal insiste na solução prisional como única resposta possível. Ainda que tenha advindo declaração do seu órgão de cúpula quanto à falha estrutural do sistema prisional, a população carcerária não para de aumentar. A declaração do Estado de Coisas Inconstitucional mais se aproxima, assim, de um conforto de consciência para os “Pilatos” preocupados com os penduricalhos salariais.

A postura omissa frente à prática da tortura é um outro aspecto que me leva a não “botar fé” na (in)justiça criminal. A observância do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, no que se refere à implementação das audiências de custódias, não alterou esse cenário de inércia, o que existe agora é a burocratização como razão de ser pelo descaso no combate a um costume que possui raízes no passado colonial brasileiro.

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Seletiva, arcaica, preguiçosa, omissa, hipócrita e classista: são esses os atributos próprios da realidade da justiça criminal, o que somente reforça a ideia de que nela não se pode confiar.

Se José Saramago inspirou o início deste texto, a ele retorno para o seu desfecho, mais especificamente à sua seguinte lição:

“Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objetivamente tem sido.”

Assim, além da indignação e do questionamento, é necessário acreditar e, principalmente, lutar por uma outra configuração da justiça, quando então a sua apresentação não precisará vir acompanhada de sua negativa, tal como se sucedeu durante todo esse texto. O toque pode ser inaudível, tanto que muitos ainda não ouvem, mas saibam que os novos sinos já dobram.

Eduardo Newton é Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Foi Defensor Público do estado de São Paulo (2007-2010) e, desde dezembro de 2010, exerce as funções de Defensor Público do estado do Rio de Janeiro.

Foto: Dias Toffoli, Presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça (G.Dettmar/Agência CNJ)

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