Justiça
Os pronomes de tratamento que cada um merece
O Egrégio Poder, após as figuras da Excelência e da Senhoria, admite um novo pronome de tratamento: a Vossa “Meliância”
Motivados por um neurótico ideário de obtenção do jovem e perfeito corpo, depara-se com uma procura cada vez maior por intervenções cirúrgicas que possam apagar ou, ao menos, arrefecer as consideradas indesejadas marcas do transcurso do tempo. Salvo se o objetivo for a criação de narrativas fictícias, não pode o analista da realidade brasileira simplesmente querer negar o passado, sendo, portanto, seu dever enfrentar o processo histórico nacional.
Ora, diante dessa necessidade em confrontar com outros tempos, não pode ignorar a mentalidade autoritária que marca a sociedade brasileira desde a invasão europeia, que dizimou a população nativa e forçou a imigração de imenso contingente populacional africano reduzido a condição de um bem.
Apesar de a escravidão ter sido abolida no final do século XIX, persiste uma diferenciação no quadro social em que a concepção de cidadania depende da pessoa que detém direitos assegurados pela ordem jurídica. Se de um lado, o liberal Norberto Bobbio [1] aponta como um dos poucos direitos humanos absolutos o de não ser submetido a tortura, Vanessa Chiari Gonçalves, ao examinar o cenário brasileiro a partir do referencial teórico fornecido por Jessé Souza, indica realidade diametralmente oposta sendo mesmo possível visualizar a dicotomia entre os torturáveis e os não-torturáveis [2].
Não resta dúvida de que a existência de uma clivagem social tem um aspecto nacional; porém, isso não impede que nuances locais possam potencializar a diferenciação que cotidianamente fragiliza a experiência substancial democrática.
A despeito dos encantos paisagísticos e da construção simbólica de que a vanguarda cultural se instalou no Rio de Janeiro, não se pode relegar para um fato histórico e que se relaciona com esse cenário de diferenciações, vale dizer, foi o local que abrigou a administração colonial, a realeza e durante um bom tempo sediou a capital do Estado brasileiro.
O distanciamento de uma ideia, ainda que seja no âmbito meramente formal, de igualdade trouxe consequências para a realidade carioca. Muito embora o “beija-mão” não mais se realize no Paço Imperial, o apego às formalidades persiste como resultado de um combinado de subserviência ao poder e de bajulação movida por interesses não-republicanos.
O âmbito forense não passou imune a tudo isso. Advogados se submetem a um controle indevido do Poder Judiciário e já docilizados celebram a benesse estatal da liberação do uso do terno e gravata no verão escaldante. Togas são ornadas por magistrados fotografados por assessores de comunicação oficiais em momentos da vida burocrática.
Esses exemplos – e que se colocados juntamente com a obsessivo apego do atual governador por faixas – tangenciam o caricato e permitem questionar quando as perucas voltarão ao cerimonial forense, o que certamente agradaria aqueles que lutam por não admitir a calvície.
Porém, não é o burlesco que deve ser questionado, mas sim a incapacidade do Poder Judiciário em reconhecer violações à ordem jurídica quando direcionadas a quem veio a ser selecionado pelas agências criminais. O artigo 78, CPC [3], que também deve ser observado no âmbito do processo penal, é de nenhuma efetividade quando as expressões injuriosas se voltam contra quem sofre a persecução penal e, por essa razão, permanecem nos autos do processo mesmo após os pedidos defensivos de riscadura.
Não resta dúvida de que meliante é forma de qualificar alguém em desconformidade com a regra de tratamento que decorre do estado de inocência, mas ainda assim o Poder Judiciário, quer seja pelo Egrégio Tribunal de Justiça, quer seja pelo respeitável juízo de direito, não vê problema algum. Ora, afirma que não se vislumbra intuito ofensivo, não tendo a autoridade praticado qualquer ato no sentido de atingir o direito líquido e certo do preso [4] ou então que os termos meliante e marginal são palavras de uso corriqueiro, utilizados no sentido de ‘suposto autor do fato’. [5]
Se o encantamento por tradições pode ser objeto de problematização da personalidade de cada sujeito, a desqualificação de quem é inocente por força constitucional é uma questão relevante, pois indica que distinções sociais subsistem e, o pior, minam o projeto constitucional de desenvolvimento da persecução penal.
Em uma escala hierárquica, o Poder Judiciário indica que alguns podem ter a parcela do seu patrimônio jurídico violado sem problema algum, mesmo que para isso sejam realizadas interpretações que fujam do domínio mínimo da língua portuguesa. O Egrégio Poder, após as figuras da Excelência e da Senhoria, admite um novo pronome de tratamento: a Vossa “Meliância”, sendo este destinado para quem goza de uma cidadania de segunda categoria, a quem se admite a tortura e que sua voz, quando ouvida, se restringe a não ser esculachado após a prisão.
[1]“O direito a não ser escravizado implica a eliminação do direito de possuir escravos, assim como o direito de não ser torturado implica a eliminação do direito de torturar. Esses dois direitos podem ser considerados absolutos …” (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus: 1992. p. 42)
[2] “(…) no contexto brasileiro, os torturáveis seriam os trabalhadores e os trabalhadores mais vulneráveis econômica e socialmente. Dentre esses, os grupos étnicos como os afrodescendentes, os indígenas e as pessoas sem escolaridade seriam as primeiras selecionadas pelo sistema repressivo.” (GONÇALVES, Vanessa C. Tortura e cultura policial no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 269)
[3] Art. 78. É vedado às partes, a seus procuradores, aos juízes, aos membros do Ministério Público e da Defensoria Pública e a qualquer pessoa que participe do processo empregar expressões ofensivas nos escritos apresentados.
[4]Autos do MS nº 0062549-17.2018.8.19.0000
[5]Processo nº 0263214-46.2018.8.19.0001
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