Justiça

OAB deve criar políticas internas que eliminem o racismo institucional

Em entrevista a CartaCapital, André Costa, único conselheiro negro entre 81 pares, fala sobre mudança nas políticas raciais pela entidade

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A insurgência do antirracismo no debate públicos veio para ficar com transformações decisivas para a sociedade. Ainda que a passos mais vagarosos, quando comparados à liderança do tema no debate público, instituições de justiças histórica e predominantemente brancas em sua ideologia e composição, estão sob discussão interna para diversificação de seus quadros, com mecanismos de inclusão que possibilite uma maior pluralidade.

 

A Ordem dos Advogados do Brasil tem acompanhado essa disputa no debate público e se viu como fonte importante do racismo. Estamos a falar da maior entidade de classe do mundo. Dados do Conselho Federal da OAB divulgados na primeira quinzena de agosto mostram que a Ordem tem 1.201.708 inscritos: 603.383 advogados (50,21%) e 598.325 advogadas (49,79%). De 2016 até 2020 ingressaram na Entidade 407.164 bacharéis em Direito, sendo 230.476 advogadas e 176.688 advogados. Vale dizer que no Brasil existem 1.776 cursos jurídicos e 863.161 estudantes de direito.

O Conselho Federal é um colegiado que representa as seções de 27 estados com três conselheiros por estado. Atualmente, entre os oitenta e um integrantes, apenas um é negro, motivo de vexame para a entidade, que tem trabalhado para um cenário diferente nas próximas composições.

Única pessoa negra no Conselho Federal, André Costa foi eleito pelo Estado Ceará e vem batalhando internamente pela adoção de cotas na entidade, ao ser autor da proposta de reservar ao menos 30% das vagas dos órgãos, cargos e direção da Entidade para advogados negros e negras, pelo período de dez mandatos – aproximadamente 30 anos. Costa também é autor da proposta que instituiu o “Prêmio Luiz Gama da OAB Nacional”, em homenagem ao jurista negro brasileiro atuante pelo abolicionismo no Século XIX.

Em entrevista à editoria de justiça da CartaCapital, Costa falou um pouco de sua carreira, dos projetos de antirracismo na Ordem dos Advogados, como também tratou da decisão do Tribunal Superior Eleitoral em reservar tempo e verba obrigatórios para candidaturas negras. Confira:

CartaCapital: Primeiro, gostaria que você se apresentasse, contasse um pouco da sua trajetória profissional.

Advogado André Costa sendo homenageado no Tribunal Regional Eleitoral do Ceará em 2015. Foto: TRE/CE

André Costa: No próximo dia 31 de outubro completarei 25 anos de exercício da advocacia. Durante esse período atuei nos órgãos da Justiça Estadual, da Justiça Federal e da Justiça Eleitoral. Advogo, com ênfase, na área do direito público, com especialização profissional em direitos políticos, direito eleitoral e direito partidário. Minha trajetória profissional é marcada por superações e vitórias. Exemplo desses acontecimentos é que sou a primeira pessoa da minha família a concluir um curso de graduação porque os familiares que me antecederam não tiverem condições sociais e econômicas nem oportunidades para chegarem ao ensino superior. “Sem parentes importantes”, como diria Belchior, conquistei meus espaços profissionais.

Dois importantes e inesquecíveis momentos sintetizam minha caminhada profissional até agora. Em 2015, o Tribunal Regional Eleitoral do Ceará, por unanimidade, me agraciou com a “Medalha do Mérito Eleitoral”, único advogado homenageado na ocasião. No ano passado, todos os parlamentares da Assembleia Legislativa do Ceará, de diferentes partidos e vínculos ideológicos, assinaram um requerimento destinado à Mesa Diretora da Casa para eu ser agraciado com a “Medalha Deputado Aroldo Mota”, cujo objetivo é reconhecer profissionais que se destacam em sua atuação no âmbito da Justiça Eleitoral. Desde sua criação, sou o primeiro profissional homenageado com essa premiação.

CC: O senhor é o único advogado negro no Conselho Federal da OAB. Como pensa que esse fato reflete na Ordem?

AC: Realmente, sou o único advogado autodeclarado negro no universo de 81 conselheiros e conselheiras federais titulares na OAB Nacional. Afirmar-se negro e revelar uma consciência racial são atitudes fundamentais no Brasil, um país construído sobre a escravidão e o racismo, onde parcela da sociedade passou anos alimentando a crença do “humanismo racial” ou o mito da “democracia racial”. Esse discurso, ainda com alguns adeptos, não se sustenta diante das desigualdades raciais econômicas, sociais, políticas e jurídicas. Como nos ensina o advogado e professor Sílvio Almeida, autor do livro “Racismo Estrutural”, precisamos conhecer e entender o que é e como opera o racismo individual, institucional e estrutural no Brasil para sabermos como combatê-los. O fato de eu ser o único advogado negro dentre os 81 conselheiros e conselheiras federais da OAB revela o racismo institucional existente nos órgãos da Entidade, situação que não é diferente nos órgãos do Poder Judiciário e do Ministério Público. Essas instituições, com raríssimas exceções, não estabeleceram medidas e políticas internas para assegurar a diversidade e a representatividade de pessoas negras nos seus órgãos, cargos e direções.

É impossível negar a atuação da OAB em defesa e promoção dos direitos humanos como também a favor das ações afirmativas e das cotas raciais para pessoas negras no ensino público superior e no serviço público, inclusive nas Forças Armadas. A Ordem atuou firmemente para que as políticas afirmativas fossem declaradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal entre 2009 a 2017. Isso está marcado na história da OAB. Entretanto, a Entidade precisa criar políticas internas que eliminem o explícito racismo institucional existente.

CC: Como a prática antirracista pela OAB pode refletir na composição predominantemente branca do Poder Judiciário?

AC: A força e o potencial da OAB são enormes e considerável parcela da população não conhece. A Ordem indica advogados ou advogadas para atuarem como ministros e ministras do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior do Trabalho e do Superior Tribunal Militar, de Tribunais Federais e de Tribunais Estaduais. Também indica conselheiros e conselheiras ao Conselho Nacional de Justiça e ao Conselho Nacional do Ministério Público. A OAB tem a prerrogativa de ingressar com ações constitucionais para questionar e invalidar deliberações dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de qualquer instância.

CC: Uma de suas propostas apresentada no Conselho Federal da OAB pelo senhor é a implantação de ação afirmativa, através de cotas raciais, nos órgãos da Entidade. Poderia explicar como funciona?

AC: O artigo 44 do Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei nº 8.906, de 04/07/1994), estabelece que “a OAB, serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas.”

Assim, analisando os preceitos legais que fixam os fins da OAB, as políticas institucionais defendidas pela Entidade junto ao sistema de justiça e aos órgãos públicos, a sua importância e dimensão na sociedade brasileira – a atual Constituição Federal preceitua que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei” (art. 133), bem como a inegável sub-representação de advogados negros e de advogadas negras nas direções da Ordem, apresentei a proposta de reserva de 30% de vagas nos cargos e nos órgãos [Conselho Federal, dos Conselhos Seccionais, dos Subseções e das Caixas de Assistência dos Advogados] da OAB para advogados negros e advogadas negras, pelo período de 10 mandatos, a partir das próximas eleições.

Em todas as oportunidades que falo sobre essa proposta sempre reitero que somente a fixação de regras e metas objetivas promoverá a inclusão da advocacia negra nos órgãos deliberativos da OAB. O estabelecimento de cotas raciais, por um prazo razoável, é o mecanismo mais eficaz para superarmos promessas e retóricas sem efeitos práticos. O racismo na Ordem não deriva de comportamento individual de qualquer conselheiro ou conselheira. É um problema institucional no sentido de não haver ações concretas e planejadas para alterar a funcionamento interno da Entidade. E a solução depende da implementação de políticas afirmativas. Não existe outro caminho mais adequado no momento a não ser a Ordem assegurar a participação de, pelo menos, 30% de advogados negros e de advogadas negras nas suas instâncias deliberativas, de representação e de direção. Essa espécie de ação afirmativa é que elevará o patamar da OAB de entidade não racista para se transformar numa entidade antirracista.

CC: Outra medida que chamou a atenção foi a criação do Prêmio Luiz Gama, notório advogado negro abolicionista do Século XIX. Poderia explicar um pouco do prêmio?

AC: Luiz Gama é um exemplo para para qualquer pessoa, pois dedicou sua vida a defender a igualdade, a justiça social e a dignidade da pessoa humana. Combateu com altivez e firmeza o racismo e regime de escravidão. Sua trajetória foi resgatada em diversos livros, artigos, quadrinhos, vídeos e filmes. Merece destaque as obras da professora doutora Lígia Fonseca Ferreira sobre Luiz Gama. Recentemente ela lançou “Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro”, pela editora Edições Sesc São Paulo.

Luiz Gama foi jornalista, advogado, poeta, maçom, republicado e abolicionista. Nasceu, em 21/06/1830, livre, na cidade de Salvador/BA. Foi vendido, como escravo, pelo próprio pai, aos 10 anos. Quando tinha 17 anos, aprendeu a ler e a escrever. Antiescravista, dedicou sua vida a libertar os escravizados negros, chegando a conseguir a libertação de mais de 500 pessoas até a sua morte, em 24/08/1882.

A OAB o reconheceu como advogado em 2015, ou seja, 133 anos após a sua morte. A aprovação da minha proposta em 17 de agosto passado pelo Conselho Federal da OAB e a instituição do Prêmio Luiz Gama da OAB Nacional, no mês da advocacia, é um ato simbólico e representativo por parte da OAB, um merecido reconhecimento à trajetória de um brilhante e corajoso advogado. Luiz Gama é uma referência para toda humanidade.

O Prêmio Luiz Gama, constituído de diploma e insígnia, será concedido uma vez a cada 03 anos a duas personalidades – um homem e uma mulher, preferencialmente, um advogado e uma advogada – e à uma instituição ou entidade que se destacam em suas atuações e atividades na defesa e na promoção da igualdade, da justiça social e da dignidade da pessoa humana e no combate ao racismo e às desigualdades raciais, sociais e regionais. A entrega ocorrerá na Conferência Nacional da Advocacia Brasileira, o maior e mais importante evento da advocacia nacional. Os agraciados serão escolhidos pela Diretoria da Ordem e referendados pelo Conselho Pleno do Conselho Federal da OAB.

CC: Em 2016, a OAB apresentou o pedido de “impeachment” da presidenta Dilma Rousseff, sob muitas vaias. Como vê o cenário político após 2016 em termos de democracia e liberdades individuais?

AC: Assumi o Conselheiro Federal na atual gestão (2019/2022), precisamente em 01/02/2019. Não participei da deliberação anterior. Por isso, prefiro não me manifestar sobre o mérito da decisão da OAB Nacional tomada no início de 2016. O que posso afirmar, objetivamente, é que, na época – e até hoje – como cidadão e como advogado, fui contra o impedimento da então Presidenta.

CC: Na terça-feira (25/8), o TSE decidiu, em resposta à consulta eleitoral apresentada pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), que a distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão deve ser proporcional ao total de candidaturas negras que o partido apresentar para a disputa eleitoral, a partir das Eleições de 2022. Qual a sua opinião sobre o assunto?

AC: A decisão e o julgamento do TSE recolocaram na ordem do dia o debate sobre a sub-representação de pessoas negras no espaço de poder e de decisão e sobre o subfinanciamento de suas campanhas eleitorais. Assisti todas as sessões que trataram do tema e li os votos dos Ministros. Dentre as pequenas divergências, teve um consenso, que para mim é uma declaração oficial e histórica: o reconhecimento da existência do racismo institucional, estrutural e sistêmico. Para quem se ilude na crença da existência de igualdade de oportunidades entre brancos e negros no Brasil, a decisão da maior Corte Eleitoral brasileira é um choque de realidade.

Sendo direto e objetivo. As instituições brasileiras refletem o racismo estrutural em nosso país. Não é à toa que, geralmente, inexistem iniciativas e políticas internas destinadas a promover a inclusão e a participação de pessoas negras em qualquer instituição pública ou privada. Nos partidos políticos não é diferente. Resistem há mais de 132 anos, mesmo aqueles que se dizem progressistas. As reações, explícitas ou não, contra os direitos civis e políticos e os representantes da população negra na política e nos espaços de poder no período pós-abolição é outro capítulo do racismo brasileiro. A história da Guarda Negra (1888-1889), da Frente Negra Brasileira (1931-1937) e da Legião Negra (1932) demonstra a difícil e excludente relação entre os negros e a política.

Espero que os movimentos sociais, especialmente o Movimento Negro, e todos aqueles que combate à discriminação racial ou que são solidários às demandas da população negra, continuem mobilizados para que a implantação de ações afirmativas e a representatividade de filiados e filiadas pretas e pardas nos órgãos de direção das agremiações políticas e nas candidaturas eleitorais. Não tenho dúvidas que a distribuição dos recursos dos fundos partidário e de financiamento de campanhas e no direito de antena é uma decisão justa, adequada e necessária para reparar a desigualdade racial na democracia representativa. E, em alguns anos, poderá mudar a composição dos poderes legislativos. Entretanto – fique bem claro – não é suficiente. É necessário a fixação de cota racial para pessoas negras nas campanhas eleitorais e nos parlamentos, por um período pré-determinado, a fim de reparar a ausência de pessoas negras nos espaços decisórios.

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