Justiça

O STF e o direito ao esquecimento

Até quando um corpo estendido no chão de uma mulher, vítima de feminicídio sexual, merece ser rememorado?

Ministro Dias Toffoli. Foto Fellipe Sampaio/SCO/STF
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Uma pergunta inquietante para os tempos digitais: até que ponto, frente à pluralidade de tratamento de dados e informações que jamais se deixam esquecer, em redes complexas de imagens, escritos, narrativas, que vão se somando, entrelaçando, conectando, nos é permitido desativar a memória social?

Qual o sentido de se falar em direito ao esquecimento, quando os espaços confinados, das sociedades disciplinares, de Bentham, falado por Foucault, foram substituídos pelas sociedades de controle, de Deleuze e Guattari, nas quais os metadados atravessam muros e ocupam espaços abertos?

Se estamos mesmo saindo dos lugares disciplinares, pré-configurados, enclausurados, agenciados, agora é tempo dos lugares disformes digitais, da constante criação de espaços, em movimentos contínuos de atravessamentos não apenas do corpo, mas da alma, criando afetos, mobilizando desejos e necessidades.

O panóptico frio dos espaços confinados se substitui pelos panópticos digitais. Mas quando esses olhos que tudo vêem podem ser dados a não enxergar? Ou melhor, quando o direito de ser esquecido pode ser aplicado, para remodelar as memórias, ocorrendo a remoção dada ao tratamento de certos dados, suspendendo o que antes havia sido conferido?

Esse tema está em pauta no STF, no Recurso Extraordinário (RE) 1010606, que teve repercussão geral reconhecida como tema 786, com julgamento nos dias 03, 04 e 10 de fevereiro de 2021, com retomada nesta quinta, em 11 de fevereiro.

O RE, sob a relatoria do ministro Dias Toffoli, discute, na área cível, o direito ao esquecimento, a partir do caso paradigma de Aída Curi, brutalmente assassinada em Copacabana, no Rio de Janeiro, em 14 de julho de 1958, lançada de um terraço na avenida Atlântica, por dois rapazes, após resistir às investidas sexuais. Tendo lutado até a exaustão contra a violência sexual, imaginando-a morta, lançaram-na do terraço, tentando forjar um suicídio.

O direito ao esquecimento foi mobilizado a partir da exibição do programa Linha Direta Justiça, da TV Globo, que, após 50 (cinquenta) anos da morte de Aída Curi, divulgou seu nome, imagem e circunstâncias do crime.

Seus irmãos acionaram pedido de reparação de danos materiais, morais e à imagem em face da rede televisiva, alegando abertura de velhas feridas familiares, com objetivos meramente econômicos, sobretudo porque teriam notificado a Rede Globo a não produzir e/ou veicular o material. Teriam o direito de não serem rememorados das dores do passado. Direito a esquecer, portanto, a tragédia familiar.

Os irmãos Curi perderam o pleito em 1ª e 2ª instâncias. Inconformados, ingressaram com o RESP 1.335.153-RJ, no STJ, e o RE 1010606, no STF. No primeiro caso, tiveram a ação julgada improcedente, sob a relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, que entendeu que a exibição do programa, 50 anos depois, sobretudo não tendo veiculado a imagem da vítima falecida, não teria o condão de gerar indenização. Nesse entendimento, o direito ao esquecimento não conduz, necessariamente, ao dever de indenizar.

Já o relator do caso no STF, o ministro Dias Toffoli, entendeu que o direito ao esquecimento, nos moldes mobilizados pela família Curi, é incompatível com a Constituição. O julgamento será finalizado na próxima semana, quando os demais ministros expressarão seus votos, valendo o caso como repercussão geral e servindo como referência para casos futuros. Entretanto, já está formada a maioria de acordo com o voto do ministro.

Questões constitucionais

A questão constitucional do esquecimento encontra como núcleo central o conflito entre duas normas constitucionais: entre o direito à liberdade de informação e/ou expressão e o direito à proteção da memória individual.

Segundo Toffoli, reconhecer o direito ao esquecimento, no caso de Aída Curi, fere a liberdade de informação, sendo incompatível com as disposições do constituinte originário de 1988. No seu voto, considerou a repercussão social do seu caso, a licitude dos dados obtidos e publicados em meios de comunicação social, analógicos ou digitais, e a correspondência com a realidade dos fatos, protegidos eventuais excessos e abusos que devem ser analisados nos casos específicos.

No seu voto, expressou que a mera passagem do tempo não tem o condão de transmutar um dado de lícito para ilícito, categoricamente afirmando que não é possível proteger informações e dados pessoais com obscurantismo, quando houver interesse jornalístico. Sugeriu a seguinte tese com repercussão geral: “É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais”.

Violência contra a mulher e memória coletiva

O enfrentamento levado a julgamento no STF, do caso de Aída Curi, bem como os resultados práticos ineficazes quanto à condenação dos seus algozes, guarda em si um amplo espectro de casos de violências contra as mulheres, agora ainda mais em evidência. A casa, que deveria ser lugar de refúgio e proteção em tempos pandêmicos, pode, para muitas mulheres, ser o espaço mais perigoso.

O Brasil, um país marcado pelo heteropatriarcado, ainda é líder em violência contra as mulheres, tendo tido, somente em 2019, o número de 1326 mortes provocadas por questões de gênero, ocupando o nada honroso 5º lugar no ranking de feminicídio no mundo.

O reconhecimento da incompatibilidade do direito ao esquecimento com a sistemática constitucional, sobretudo em casos exemplares para a coletividade, podem ser mobilizados de forma educativa para alcançar um regime jurídico constitucional do direito à memória.

Falar em direito à memória é, sobretudo, lembrar daquilo que jamais deve ser esquecido e, dado o seu caráter exemplar, repetido. A memória, em virtude de sua dupla função, ao mesmo tempo lembra o que deve ser lembrado e, seletivamente, esquece o que deve ser esquecido, fazendo o enlace entre o passado e o futuro, deixando livre o caminho para novas informações.

No seu voto, Toffoli afirmou que “[c]asos como de Aída Curi, Ângela Diniz, Daniela Perez, Eloá Pimentel, Marielle Franco e, recente, da juíza Viviane Vieira, entre tantos outros, não podem e não devem ser esquecidos”. Apesar de não ter avaliado, a fundo, as questões atinentes à memória digital, fazendo com que estas possivelmente, retornem para futura apreciação no STF, o reconhecimento da incompatibilidade do direito ao esquecimento com o regime constitucional, nos moldes traçados no caso de Aída Curi, representa, certamente, algum avanço.

Os casos concretos exigirão remendos futuros no estabelecimento de parâmetros mínimos de ética no tratamento de dados, tais como os direitos da personalidade, questões da verdade atual e, especialmente, da utilidade da informação. A proteção da memória coletiva deve se ater a interesses públicos, de impactos reais para a coletividade, não podendo ser encampados interesses meramente mercadológicos, o que poderia consolidar, ao revés, a mobilização de informações que apenas servem à industrialização da informação, que possam atiçar a curiosidade pública e não o interesse público.

Consolidar a memória social se relaciona, em si, ao aperfeiçoamento da cultura democrática. O reconhecimento, nos moldes do caso de Aída Curi, do direito ao esquecimento, inviabilizaria o processo democrático constitucional pleno.

A negação do direito à memória, enquanto mecanismo reparatório e criador de pontes entre passado e futuro, é gravíssima para os processos de democratização. Abrir brechas para o esquecimento pode tornar o Estado fiador de injustiças, pois, através de cegueiras compulsórias, dificulta processos históricos de aprendizados, uma vez que registra na memória do direito a possibilidade de, por interesses menores, interromper o processo de revisitação da história, mergulho que, a seu tempo e modo, evitará eventuais tropeços nos mesmos erros do passado.

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