Justiça
O “espião” fala
Tony Garcia é outro alvo da Lava Jato a expor os métodos de Moro e companhia


Da “República de Curitiba” restam os escombros. Depois das denúncias de extorsão do advogado Rodrigo Tacla Duran, das revelações em livro do empreiteiro Emílio Odebrecht e da entrevista do empresário Eduardo Aparecido de Meira, sócio da construtora Credencial, ao jornalista Luís Nassif, uma nova vítima veio a público expor os métodos escusos do ex-juiz Sergio Moro e de outro expoente da força-tarefa, o ex-procurador Carlos Fernando Santos Lima. A história de Antônio Celso Garcia, conhecido como Tony Garcia, começa antes da Lava Jato, estende-se até a operação e revela como Moro, Lima, Deltan Dallagnol e associados eram peritos em manipular e fabricar provas ilícitas, coagir seus alvos, plantar notícias falsas e ameaçar suspeitos. Não se trata de deslizes nem de casos isolados, muito menos começou em 2012.
Próximo ao ex-governador tucano Beto Richa, Garcia se diz traído e, por isso, teria decidido revelar sua vida de “espião” a serviço do ex-juiz. “O Ministério Público Federal, depois de me usar por muitos anos, pediu a quebra do meu acordo. Por isso trouxe tudo à tona agora”, afirmou a CartaCapital. O empresário é uma metralhadora giratória e mistura denúncias graves a fatos picantes. Segundo ele, Moro reuniu farto material com potencial para chantagear desembargadores do Tribunal Federal da 4ª Região, segunda instância à qual se submete a 13ª Vara de Curitiba, onde o então juiz despachava. A razão da chantagem? Os magistrados teriam participado e sido gravados em uma “festa das cuecas” com prostitutas em uma suíte de um hotel badalado de Curitiba. Garcia afirma ter participado da festa, a convite do advogado Sérgio Costa Filho, organizador da “balada”. Havia de 30 a 40 convidados. “Não conhecia ninguém. Fiquei em uma antessala até que o Sérgio me disse que passasse para o outro ambiente.” O que viu, diz ele, “foi hilário”. Alguns convivas trajavam cueca, camisa e gravata. “Fiquei pouco tempo e resolvi ir embora.” Segundo Garcia, foi Costa Filho quem lhe confidenciou a presença de desembargadores. O advogado utilizava uma minicâmera na gravata para gravar o convescote. O intuito seria reunir material contra magistrados do TRF-4.
As denúncias do empresário foram ignoradas por dois anos, até o juiz Eduardo Appio assumir a 13ª Vara de Curitiba
O vídeo nunca teria sido utilizado em qualquer processo. Sabe-se de sua existência, mas permanece escondido até hoje. Moro, ao tomar conhecimento da gravação, decidiu procurá-la, diz Garcia. Ordenou uma busca no escritório de Costa, em Curitiba, mas não encontrou nada. Até o dia em que o empresário comentou com o magistrado sobre um endereço que o advogado usava em São Paulo para guardar um carro. O juiz teria então mandado fazer uma nova busca no apartamento e, desta vez, diz o “espião”, encontrou documentos e o vídeo. Em seguida, teria agradecido ao delator. “Na mosca, estava tudo lá.” Ao perguntar ao ex-juiz sobre o filme, recebeu uma resposta ríspida: “Isso não é de seu interesse”. “Não sei se fez uso do material, mas que ele estava de posse é verdadeiro”, afirma. O empresário sugere ao Supremo Tribunal Federal e à Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça diligências em busca das gravações. “Onde estão? Por que não aparecem? Teriam sido usadas para fazer chantagem? O que aconteceu em Curitiba é muito grave. Agora foi afastado o juiz Eduardo Appio, que tentava tirar estes esqueletos dos armários, e colocaram uma magistrada totalmente ligada a Moro”, em referência à juíza Gabriela Hardt.
Sua prisão anos atrás, diz Garcia, foi um ato combinado com Moro e Santos Lima. “Eu tinha o dia determinado para ser preso e para ser solto.” E o que o réu precisava dar em troca? Gravar conversas no presídio e dar declarações públicas contra o juiz e o procurador, uma maneira de disfarçar a condição de informante. Segundo ele, a decisão do TRF-4 para libertá-lo foi anteriormente combinada, espécie de jogo de cartas marcadas. Um desembargador iria condená-lo e outros dois deveriam absolvê-lo. O resultado final foi exatamente esse, 2 a 1. “Sabia, inclusive, o dia e o resultado do TRF-4. Moro me informou. Combinamos ainda uma entrevista assim que fosse libertado. Eu os criticaria, e vice-versa, tudo para passar a impressão de briga.”
Gabriela Hardt se declara impedida, mas pode ser processada por prevaricação – Imagem: Rodolfo Buher/La Imagem/Folhapress
Vamos entender a trajetória de Garcia. Nascido em São Paulo, o empresário chegou ao Paraná no início da década de 1980. Em Curitiba, casou-se com a filha do então governador Ney Braga, que abriu ao genro o mundo dos negócios. Garcia foi trabalhar em uma agência de publicidade que detinha, entre outras, as contas do estado administrado pelo sogro. Da publicidade migrou para o mercado financeiro ao abrir a Valtec Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários, falida em 1984. Acabou punido pelo Banco Central com a inabilitação para atuar no setor, mas obteve na Justiça a redução da pena. Em 1989, criou o Consórcio Nacional Garibaldi. O empreendimento, que também faliu, em 1994, deixou milhares de consumidores na mão. O prejuízo estimado à época chegava a 36 milhões de reais. O processo por fraude o levaria à prisão em novembro de 2004. Neste momento, conheceu Moro e Santos Lima.
Em 2006, Garcia deu uma entrevista à revista Veja, mesma publicação a lhe conceder espaço na sexta-feira 2, negociada pelo juiz e pelo procurador. Diz ter recebido à época uma ligação de um repórter. Argumentou que pouco teria a dizer, uma vez que o processo corria em sigilo. O jornalista insistiu em vê-lo pessoalmente e o empresário topou marcar um encontro para o dia seguinte em seu escritório, quando voltou a repetir que não via sentido em falar. No transcorrer da conversa, percebeu que o repórter tinha muitas informações. Para ele, só mesmo quem obteve acesso ao inquérito ou foi bem orientado poderia saber de tantos detalhes. Até que o entrevistador disse: “E se eu falar que isso aqui (a entrevista) é uma escolha de pessoas que estão com você?” Cético, ligou para Santos Lima, que confirmou. O jornalista ainda reforçou: “Podemos falar de tudo porque os dois estão sabendo”. Foi quando Garcia resolveu incriminar o ex-ministro José Dirceu, ao se dizer responsável pelo pagamento do mensalão ao MDB. Qual a intenção de Moro? Atingir o PT, diz o delator, e, por extensão, o presidente Lula.
“Está muito perto de vermos alguns provarem do próprio veneno”, diz Garcia
Em resposta, o hoje senador negou as acusações de Garcia, chamou-o de criminoso condenado e declarou que o empresário, “a pedido do MP, com supervisão da Polícia Federal, resolveu colaborar com a Justiça, ocasião em que foi autorizado a gravar seus cúmplices”. Moro acrescentou: “Nunca houve qualquer escuta clandestina”.
Garcia confessa ainda a participação em outra tramoia política, o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Amigo do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, o empresário contribuiria para a operação que visava impedir a abertura de um processo no Conselho de Ética contra o emedebista. Tucanos como Aécio Neves e Carlos Sampaio integravam o esquema. O tiro saiu, porém, pela culatra, após o deputado Valdir Rossoni roer a corda e exigir o pagamento de 5 milhões de reais para defender Cunha na Comissão. Segundo Garcia, por conta de sua amizade com o então presidente da Câmara, teria sido usado pela República de Curitiba para colher informações sobre a Petrobras e o PT.
Em 2018, voltaria a agir em favor de Moro, ao gravar conversas com o amigo Richa. Segundo o delator, o grupo político do ex-governador recebia propina em troca da manipulação das licitações de estradas. De acordo com Garcia, o modo de ação de Moro e dos procuradores no caso do consórcio e durante a Operação Lava Jato, uma década depois, assemelha-se ao de qualquer organização criminosa, com a prática contumaz da coação, tortura psicológica e ameaças à família dos presos. Comparou os métodos usados com a prisão norte-americana de Guantánamo. Reconhece que, em 2004, após ter assinado um acordo de delação premiada, atuou como espécie de agente infiltrado. Garcia foi o segundo réu, depois do doleiro Alberto Youssef, a fazer um acordo de delação premiada no Paraná. Agentes da Abin, diz, permaneciam todo o tempo ao seu lado, para receber diariamente os números de telefones a serem grampeados.
Garcia acusou Dirceu por ordem de Moro. Cunha era um aliado – Imagem: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR e Marcelo Camargo/ABR
O deputado federal Rogério Correa, do PT de Minas Gerais, apresentou um requerimento à Câmara dos Deputados no qual solicita que Garcia seja convidado a “se manifestar e esclarecer denúncias que tem apresentado como alvo de coação por servidores do Poder Judiciário, para a prática de atos ilícitos na produção de provas clandestinas, não autorizadas no âmbito da Operação Lava Jato”. O parlamentar lembra ainda que o empresário, em procedimento sigiloso à juíza Gabriela Hardt, em 2021, fez graves acusações contra Moro, Dallagnol, Diogo Castro e Januário Paludo, integrantes da força-tarefa, mas o relato foi ignorado pela magistrada. Na segunda-feira 5, Hardt declarou-se suspeita para julgar ações contra Garcia. O empresário avisou que mesmo assim vai processá-la. Ao engavetar por dois anos a denúncia em audiência oficial e com a presença do Ministério Público, argumenta o empresário, a juíza teria prevaricado. “Quem desengavetou foi o doutor Appio, que remeteu ao STF.” Na terça-feira 6, o ministro José Dias Toffoli, do STF, invocou os autos das denúncias de Garcia e proibiu tanto a 13ª Vara quanto o TRF-4, alvos das acusações, de tomarem qualquer decisão referente ao assunto.
Aos 70 anos, Garcia, antes calado, parece disposto a ir até as últimas consequências. “Está muito perto de vermos alguns provarem do próprio veneno. Tic tac tic tac!!!”, escreveu no Twitter. E sugere a criação de uma CPI. “Não pretendo nada com o que trago à tona, senão ter a consciência tranquila de que estou fazendo a coisa certa. Este é o legado que pretendo deixar aos meus filhos.” •
Publicado na edição n° 1263 de CartaCapital, em 14 de junho de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O “espião” fala’
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