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Novos alicerces

Neste mandato, Lula prioriza as alianças em prol da governabilidade e da estabilidade institucional

Imagem: Nelson Jr./STF
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O Brasil ainda não ­atravessou o Rubicão. Os efeitos do desarranjo institucional continuam a ser sentidos, e a relação entre os poderes é o reduto mais crítico dessa persistência.

Sob Bolsonaro, o presidencialismo de coalizão fez água e se já era difícil ignorar o papel político do Supremo naquela dinâmica, ao menos desde a Lava Jato tudo se tornou mais ambivalente na relação da Corte com os poderes representativos. Primeiro, pela incompetência de Bolsonaro e, depois, pelo mais básico instinto de preservação, a relação-padrão entre o Executivo e o Legislativo alterou-se profundamente em direção a uma quase-supremacia do Congresso, considerando o conjunto de poderes que retêm os parlamentares na conformação da governabilidade. A base ganhou uma excessiva autonomia em relação ao governo e o custo da construção de maiorias aumentou no governo Lula.

Ainda sob o rescaldo do governo Bolsonaro, o STF fez-se imprescindível à retomada da normalidade democrática, avançando, com isso, várias casas no tabuleiro. Por vezes chamou para si funções da promotoria, em resposta à inação de Augusto Aras, PGR ostensivamente alinhado à agenda populista de Bolsonaro, para restabelecer algum limite a um governo que fez da Corte sua inimiga número 1. O STF, mais unido do que nunca, articulou também, a partir do Tribunal Superior Eleitoral, a realização de uma eleição presidencial competitiva e sem fraudes. Com isso, ganhou (ainda mais) espaço e protagonismo em uma situação excepcional.

O padrão da relação entre os poderes havia se modificado de modo indelével, sem que nada fosse posto no lugar. Esse é o tamanho do desafio que Lula assumiu há quase um ano. E o jogo segue enquanto as regras são reescritas.

É possível dizer que o presidente não se fez de rogado. Lula não quer arriscar. Na relação com o Supremo, a tarefa de reconstruir pontes desdobrou-se no exercício de reforçar a imagem do tribunal, sem deixar de politizar as indicações que tem realizado – nesse último caso, também no plano das adjacências jurídicas. Ainda presidente eleito, visitou o STF e se deixou fotografar ao lado dos ministros que permitiram que Lula fosse preso por mais de 500 dias. Gilmar ­Mendes, que impediu Lula de assumir a Casa Civil no governo Dilma, acabando com qualquer chance de a presidente escapar do ­impeachment, acabou por se tornar um aliado importante. Juntamente com ­Alexandre de Moraes, “o xerife”, conseguiu emplacar um PGR distante das preferências do Partido dos Trabalhadores e de biografias mais afetas à defesa de direitos sociais, difusos e coletivos, a que ainda se dedica uma ala do Ministério Público Federal. Também a lista tríplice votada pelos procuradores, que outrora havia servido de guia inescapável de Lula na indicação do PGR, foi solenemente ignorada.

Aparentemente, Lula não apenas identificou que um procurador-geral preocupado apenas com o voto dos colegas para sua recondução é um risco político a que ele não pode se dar ao luxo, como também tem razões para reforçar o papel do STF no processo de escolha do PGR, considerando a intervenção vitoriosa da coalizão Mendes-Moraes. De fato, diante do cenário ainda conturbado, um PGR mais alinhado ao governo é uma garantia contra justiceiros como aqueles do auge da Lava Jato. E mais: cobrar de Lula que mantivesse a lista tríplice depois de tudo que passou por obra e graça da atuação do Ministério Público é de uma inocência, ou cinismo, que não condiz com o momento de delicado equilíbrio entre os poderes.

A tarefa de reconstruir pontes desdobrou-se no exercício de reforçar a imagem do STF

As duas indicações de Lula para o STF – Cristiano Zanin e Flávio Dino – expressam ainda a politização do processo, no sentido de ampliar a influência do governo sobre a Corte. E em nenhum dos casos, em que pese o fato de Dino identificar-se como pardo, o presidente Lula, que tem um compromisso e uma atuação favoráveis à representação dos grupos historicamente excluídos em cargos importantes, levou em consideração o critério de diversidade e representatividade. Se, na sua passagem anterior pela Presidência, Lula mobilizou o processo de indicação para sinalizar valores ao eleitorado, privilegiando aqueles critérios, as escolhas atuais apontam para a maior preocupação do presidente com a construção da governabilidade.

Lula sabe que a indicação não assegura lealdade de modo automático e duradouro. Exemplos não faltam daqueles que, indicados por ele, viriam a tornar-se seus algozes. No curto prazo, alguém com agudo compromisso político, visão de mundo semelhante e personalidade forte pode, no entanto, fazer a diferença na Corte. Essa é a avaliação do governo, que ganha mais relevância justamente pela indefinição da posição das peças no tabuleiro e pela pauta que virá.

A mudança de padrão da relação entre os poderes também se apresenta nas interações entre o Congresso e o STF. Pela primeira vez, desde a Constituição de 1988, o Legislativo avança na possibilidade real de impor algum tipo de limite ao poder da Corte. Por meio de uma proposta de emenda constitucional, que ainda precisa passar pela Câmara, a maioria dos senadores decidiu impedir que os ministros, individualmente, possam barrar, mesmo que provisoriamente, uma decisão tomada pelo Parlamento.

De fato, desde 1988, a Suprema Corte só fez ampliar seu poder. Mesmo a Reforma Judicial de 2004, que criou o Conselho Nacional de Justiça, serviu, na verdade, para reforçar a autonomia administrativa do Judiciário. O recente gesto de autocontenção, expresso pela emenda regimental aprovada no apagar das luzes da passagem de Rosa Weber pelo Supremo, atacando o perfil ministocrático do tribunal, não convenceu (quase) ninguém.

O consenso em torno da necessidade de limitação do incomum poder ­individual dos ministros do STF foi palco para o movimento estratégico de retaliação da ala reacionária do Senado. A PEC segue para a Câmara dos Deputados e renova os termos da relação entre os poderes, com a entrada em cena de novos atores. Um deles é o presidente Arthur Lira, que não parece apresentar a mesma disposição que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, para tratar do assunto. Na Câmara tramita, aliás, outra proposta, mais branda que a aprovada no Senado, e que contou com o apoio de Gilmar Mendes na redação.

É bem possível que o bem-vindo aprimoramento institucional do Supremo se faça de modo mais incremental e exija mais esforço de diálogo e negociação entre as elites políticas e judiciais. Resultado disso, a atual composição do STF, acrescida de Dino, e (com licença poética) de ­Gonet à frente da PGR, talvez favoreça de modo mais imediato a canalização da força remanescente do lavajatismo para a agenda de defesa da democracia. Nesse sentido, as ações que interpelam os responsáveis pelos atos golpistas de 8 de janeiro e as investigações que envolvem abusos do ex-presidente Jair Bolsonaro e seus aliados fazem do STF o palco para o qual deveremos olhar em busca de evidências de sucesso das costuras pelo restabelecimento do equilíbrio entre os poderes da República. •

Publicado na edição n° 1291 de CartaCapital, em 27 de dezembro de 2023.

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