Justiça

No embalo de Morfeu, as instituições funcionam normalmente…

O inusitado pedido de impeachment assinado por Bolsonaro contra Alexandre de Moraes revela abalos sísmicos incontornáveis entre poderes

Luiz Fux, Arthur Lira, Jair Bolsonaro e Rodrigo Pacheco. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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“As instituições estão funcionando normalmente”. O velho mantra, repetido desde as eleições de Bolsonaro, em 2018, cada vez mais mostra ser apenas isso, um mantra, cujo poder de enfeitiçamento afirmativo conduz à manutenção descabida de uma crença que carece de qualquer base empírica.

As instituições estão funcionando com tanta anormalidade que abalos sísmicos balançaram vorazmente a Praça dos Três Poderes nos últimos dias. No festim dos absurdos normalizados e do intolerável rotineiro, a velha normalidade arrumou suas malas e deixou o Brasil já há tanto tempo que sequer pôde assistir ao inusitado pedido de impeachment assinado pelo Presidente da República, em 20/08/2021, em conjunto com o advogado-geral da União, Bruno Bianco, requerendo a deposição do ministro do STF, Alexandre de Moraes.

Apesar de já recusado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), o pedido esquizofrênico, o primeiro de que se tem notícia na história do Brasil, guardaria um ineditismo cômico se não fosse a atmosfera sombria e perigosa que paira sobre a questão, confirmando o cenário de anormalidade institucional. O próprio STF publicou uma nota repudiando o ato descabido de Bolsonaro, atentatório não apenas ao ministro, mas, principalmente, à necessária harmonia entre os poderes.

O MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES, DO STF. FOTO: NELSON JR./STF

O ministro Moraes despertou a fúria do Presidente com a condução do Inq. 4781, vulgo “inquérito das fake news”, que investiga atos atentatórios contra o Estado Democrático de Direito. O uso de notícias falsas de forma massiva, criminosa e, segundo apurações recentes, financiado com verbas públicas, tem servido para ameaças ao STF, com denunciações caluniosas contra os ministros e ataques às instituições democráticas, as principais opositoras dos anseios autoritários do chefe do Executivo.

Os ataques pioraram após a aproximação inevitável de Bolsonaro, com a revelação, aos poucos, do esquema de uso massivo de fake news, vez que ele as utiliza em seu benefício, desde a sua eleição, em 2018.

Há boatos de que os próximos alvos do inquérito seriam os filhos do presidente, em especial, Carluxo, o 03, o que justificaria o pedido de impeachment de Moraes, que, embora padeça de legalidade e fosse inevitável a sua rejeição no Senado, responde e ecoa a certo público, afinal, a guerra é de narrativas.

Os alvos principais das milícias digitais são os ministros do STF, vistos por parte da ala bolsonarista como os que oferecem maior obstáculo aos rompantes ditatoriais do governo, tendo em vista o modelo de controle de constitucionalidade democrático, que permite ao poder judiciário rever os atos da presidência, quando eivados de ilegalidades e atentatórios às disposições da Carta Cidadã de 1988. Os ânimos se acirraram de tal maneira que Bolsonaro afirmou que pediria a abertura de processos contra as condutas dos ministros Moraes e Luis Roberto Barroso.

O inquérito das fake news indica o recebimento de verbas públicas para conduzir os ataques criminosos, com o objetivo de esfacelar o poder judiciário, incitando atos violentos e ameaçadores aos ministros, inclusive quanto à integridade física. Segundo áudio gravado por Sérgio Reis, há o intuito de ruptura institucional, com um golpe de Estado prometido para as vésperas de sete de setembro, encampado por Bolsonaro, que usará das Forças Armadas para “tirar na marra” os ministros do STF.

A escalada de agressões contra o poder judiciário atingiu picos incontornáveis, rompendo, inclusive, a blindagem da PGR, com o pedido por parte da subprocuradora-geral da República, Lindôra Araújo, de busca e apreensão contra o cantor Sérgio Reis, o deputado bolsonarista Otoni de Paula, dentre outros, com a definição, ainda, da proibição de aproximação do Palácio do Supremo Tribunal Federal, exceto no caso de Otoni de Paula, e o bloqueio da chave Pix que iria financiar o ato. Anteriormente, a Polícia Federal já havia pedido a prisão de Roberto Jefferson, por ataques às instituições, deferido por Moraes, relator do inquérito.

O pedido ao Congresso Nacional da deposição do ministro Alexandre de Moraes, por parte de Bolsonaro, alega quebra de decoro, dignidade e imparcialidade do magistrado. A esdrúxula petição está repleta de bordões e palavras vazias, como ao afirmar que não há risco de “ruptura institucional”. De forma ardilosa, na típica inversão bolsonarista, é o STF que colocaria em risco a Constituição, ao proferir decisões desfavoráveis ao presidente.

A Constituição, para Bolsonaro, assim como a sua ideia de povo, guarda origem fascistóide: povo e Constituição são aquelas que se curvam aos seus desígnios, como palavras ginastas que, dobrando aqui e acolá, amoldam-se aos seus impropérios.

Escalada autoritária

Os ataques sucessivos e em escalada ao STF, em março deste ano, foram o estopim do pedido simultâneo de saída dos três comandantes das Forças Armadas, do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em virtude dos anseios golpistas e atentatórios às instituições democráticas por parte de Bolsonaro. O ex-ministro da Defesa e Segurança Pública, Raul Jungmann, chegou a mencionar que a gota d’água para a saída dos comandantes foi quando Bolsonaro solicitou que os caças Gripen sobrevoassem o STF acima da velocidade do som para estourar os vidros do prédio.

Os ataques ao voto eletrônico também confirmam esse rompante esquizofrênico e perigoso contra o TSE e as instituições do judiciário, para preparar o território para a possível derrocada nas urnas de Bolsonaro, que apela para o medo e a instabilidade, ainda mais após a rejeição da PEC do voto impresso (PEC 135/2019) na Câmara dos Deputados.

Embora animais acuados ataquem com mais vigor, os abalos tendem a se tornar cada vez mais frequentes. O Congresso Nacional já rejeitou em 28/08/2021, o pedido descabido de impeachment de Moraes, mas a sua mera existência já é um absurdo. Independentemente da aprovação, a sua apresentação ao Congresso comunica, por si só, algo perigoso: o cenário de crise e de medo que perseguirá, fantasmagórico, até o fim do mandato de Bolsonaro.

Outros terremotos tentarão abalar as estruturas. Embora o judiciário tenha começado a despertar dos braços de Morfeu, as raízes do bolsonarismo talvez tenham crescido demais: ao desacreditar as instituições, são os afetos das pessoas os verdadeiros alvos, gerando suscetibilidades.

As instituições democráticas ainda funcionam, embora com ranhuras e sem qualquer lembrança de normalidade que se torna, cada vez mais, não apenas uma mantra, mas uma piada de péssimo gosto.

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