Justiça

Negros têm 43% menos chance de acordo penal no Rio, aponta pesquisa

Análise de 3,3 mil processos mostra que território, raça e classe definem punições sob a Lei de Drogas; ocorrências em favelas resultam em 76% de sentenças de prisão

Negros têm 43% menos chance de acordo penal no Rio, aponta pesquisa
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Um novo estudo do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) expõe, com dados até então inéditos, como o Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro opera de forma seletiva na aplicação da Lei de Drogas, que define o que é proibido, o que é crime e como o Estado deve agir em tudo que envolve drogas ilícitas.

Segundo o levantamento, 69% dos acusados e 77% dos condenados com base na lei são negros, evidenciando a sobrerrepresentação dessa população ao longo de todas as etapas do processo. Quando as sentenças mencionam que a ocorrência se deu em “favela” ou “comunidade”, quase 80% acabam em condenação. “Os resultados vêm reforçar o que já se viu em outros levantamentos: o Sistema de Justiça Criminal no Brasil é racista”, diz a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do CESeC.

A pesquisa Engrenagem seletiva, lançada nesta segunda-feira 24, analisou 3.392 casos julgados entre 2022 e 2023 e concluiu que raça, classe e território são fatores decisivos para determinar quem será punido — e de que maneira.

Do total de casos analisados pela entidade, 911 foram enquadrados em porte para consumo pessoal, 2.168 em tráfico e 1.212 em associação para o tráfico. Os dados foram obtidos via Lei de Acesso à Informação. O trabalho envolveu o Grupo de Pesquisa em Ciências Criminais da UFRJ e o Laboratório de Análise da Violência da UERJ, com geocodificação dos locais de residência e abordagem dos acusados. 

O último censo do IBGE, de 2022, apontou que, no Rio, quase 58% da população é negra, enquanto 42% se declarou branca.

A porta de entrada do sistema penal permanece sendo a abordagem policial. Segundo o levantamento, 42% dos casos de uso de drogas foram motivados por “comportamento suspeito”, enquanto em 41% das ocorrências simplesmente não há justificativa registrada. As abordagens por tráfico e associação, por sua vez, ocorrem majoritariamente em áreas pobres. E, no caso do uso pessoal, mesmo quando a ação policial acontece em bairros abastados, o alvo é morador da periferia. 

Da abordagem à sentença, o viés racial e territorial do Sistema de Justiça Criminal do Rio de Janeiro (Arte: CeSEC)

Outro dado importante revelado pelo estudo é que 20% das investigações por tráfico envolveram entrada policial em domicílio, embora apenas 7% tivessem ordem judicial para tal. Pela legislação brasileira, essa prática é proibida, salvo em situações muito específicas — flagrante delito ou prestação de socorro, por exemplo. Fora dessas hipóteses, a incursão é considerada ilegal e pode levar à nulidade das provas eventualmente obtidas na ação.

As questões territoriais também aparecem como indicativo da engrenagem do sistema de Justiça: em 19,4% dos casos há menção explícita de o local da ocorrência ter sido em favela ou comunidade. A referência aumenta consideravelmente de acordo com o crime: nos casos de uso pessoal, apenas 3% registram o território, número que salta para 15% nos processos de tráfico e vai a 45% quando a imputação é de associação para o tráfico.

O relatório destacou ainda que a maconha foi a droga mais comum em casos de uso (59,6%) enquanto cocaína foi a mais recorrente em casos de tráfico (79,5%). “Homens, jovens, negros, moradores das favelas e das periferias formam o maior contingente de réus da Lei de Drogas”, destaca a pesquisa. “Eles são os alvos de um sistema penal que vai sempre enxergá-los como suspeitos, num País marcado pelo racismo e pela desigualdade”.

É a imputação policial quem define o destino do processo, argumenta o estudo do CESeC. Quem é enquadrado por tráfico ou associação tem 94% de chance de ser denunciado pelo Ministério Público, ao contrário de quem é enquadrado por porte para consumo pessoal. Entre os acusados por associação, 73% recebem denúncia por associação, tráfico, ou ambos. Quando os dois crimes são imputados conjuntamente, 85% acabam denunciados por essas mesmas tipificações.

O recorte etário é outro marcador: réus mais velhos aparecem mais nos processos de uso, enquanto jovens — sobretudo jovens negros — são mais enquadrados como traficantes. Os pesquisadores sustentam não ter encontrado indícios de que o MP, diante de imputações iguais, denuncie mais negros do que brancos. “A desigualdade aparece em outro ponto: negros e pobres estão sobrerrepresentados nos crimes de maior risco processual, como tráfico e associação. Como esses crimes quase sempre resultam em denúncia, o efeito agregado é que negros acabam denunciados com mais frequência”.

Acusados brancos recebem a maioria das ofertas de transação penal 

Um dos achados mais incisivos do estudo é a diferença no acesso à transação penal, acordo que permite substituir a pena de prisão por multa ou restrições de direitos nos casos menos graves. Acusados brancos recebem 60,8% das ofertas. Entre os negros, a chance é 43% menor. O Código de Endereço Postal também pesa: moradores de áreas pobres recebem menos propostas, acusados em áreas de classe média concentram ofertas, e, nas áreas de alta renda, o sistema quase nem chega a propor acordos — porque há 90% de pedidos de arquivamento ou absolvição.

O peso do território alcança o ápice na sentença. Quando há menção explícita de que a ocorrência se deu em favela ou comunidade, 76,5% das decisões resultam em prisão. Se o local é descrito como controlado por facção, o índice sobe para 79,3%. Outra engrenagem automatizadora de condenações é a Súmula 70 do TJ-RJ, a permitir que o depoimento policial seja a única prova do processo — recurso frequentemente acionado em casos originados em favelas.

A disparidade racial também aparece no tempo de pena: pessoas brancas recebem média de 810 dias, pessoas negras, 1.172 dias, um ano a mais. Para Ignacio Cano, sociólogo e professor da UERJ, o estudo evidencia a existência de um procedimento, feito do momento da abordagem até a sentença, que pune mais severamente as pessoas negras. “Quando vemos que ser negro diminui em 43% a possibilidade de oferta de transação penal em comparação com pessoas brancas, é inequívoco afirmar que existe um viés racial contra essa população”.

“Ser negro, jovem, pobre e morar em favela leva a uma quase certeza de condenação pela Lei de Drogas. Essa engrenagem não é uma distorção do sistema: é o modo como ele funciona”, completa Giovanna Monteiro-Macedo, coordenadora da pesquisa do CESeC.

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