Justiça

Mônica Benício lembra Marielle ao lado de Angela Davis nos EUA

Para viúva da vereadora assassinada, descartar mandante do crime seria insulto ao povo brasileiro

Monica Benício (Tânia Rêgo/ Agência Brasil)
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Mônica Benício desfaz uma mala enquanto faz outra, emendando viagens na sua luta por justiça para Marielle Franco. A viúva da ex-vereadora carioca, cujo assassinato completa um ano nesta quinta-feira 14, viajou terça-feira 12 para os Estados Unidos. O motivo é nobre: ela passará o aniversário da morte de sua companheira ao lado da icônica ativista negra Angela Davis, numa mesa de debates na prestigiosa Universidade de Princeton, em Nova Jérsei.

“Seria muito difícil emocionalmente estar nesse momento no Rio de Janeiro ou nos atos. Achei que seria uma boa homenagem da minha parte estar ao lado da mulher que sempre inspirou a luta de Marielle”, afirmou Mônica em entrevista exclusiva à RFI. Ela falou ainda sobre a prisão de dois suspeitos do crime contra Marielle nessa terça-feira e fez um balanço desse ano sem sua mulher, que floresce, no entanto, como ícone de resistência no imaginário de jovens ativistas.

RFI: Foram capturados dois suspeitos do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. Um deles, apontado como o autor dos disparos, é Ronnie Lessa, policial reformado com passagens pelo Bope e pela Polícia Civil do Rio. O outro, Élcio Vieira de Queiroz, é um ex-policial militar. A promotoria chegou a provar e o Ministério Público divulgou que Lessa era “obcecado” por militantes de esquerda. Você se surpreendeu com o perfil dos suspeitos?
Mônica Benício: Desde o início o crime se configurava como um crime político, com participação de agentes do Estado, com envolvimento da milícia, e nada disso me surpreendia, enquanto revelação. Agora, sinceramente: o que mais me surpreende é alguém cogitar a possibilidade do assassinato de Marielle ser por motivação de ódio. Essa ideia é estapafúrdia e não faz o menor sentido. Isso, inclusive, é mais um atentado à memória de Marielle, um insulto ao povo brasileiro. Todas as linhas devem ser investigadas, mas que não descartem a possibilidade de um mandante, porque obviamente foi um crime político e a gente precisa saber quem foi que mandou matar a Marielle e quais os interesses envolvidos.

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RFI: A grande expectativa é descobrir não apenas quem matou, mas quem mandou matar. A imprensa brasileira divulgou nesta terça-feira que Ronnie Lessa mora no mesmo condomínio que Jair Bolsonaro e chegou a ser homenageado na Alerj, a Assembleia Legislativa do Rio. Você acha que essa ligação pode ser feita?
MB: Digo desde o início que o mais importante desta investigação é o comprometimento com a verdade. Eu sempre me preocupei, desde o início que, devido à repercussão, e conhecendo a política do Rio de Janeiro e do Brasil, que eles pudessem entregar qualquer resultado, para silenciar a repercussão, inclusive mundial sobre a execução da Marielle. Então acho importante a gente não especular ou ficar levantando hipóteses em cima de possíveis conexões. Mas todas as linhas devem ser investigadas. Se foi uma coincidência ou não esse fato [do presidente Jair Bolsonaro ter uma casa no mesmo condomínio que o ex-policial, acusado de ter feito os disparos], que seja investigado também. O meu compromisso é com a verdade e até agora nada os vincula dessa forma. Exceto que, a família, o clã que está no poder já fez sim homenagens a milicianos, temos dados sobre isso. É preciso ter cautela para que a gente não vire um grande espetáculo midiático, isso não é o meu objetivo. O objetivo é saber quem foi que matou a minha companheira, quem é que puxou o gatilho, quem dirigia o carro. Fizemos essa etapa de hoje com essa demora de um ano, num crime político de repercussão mundial. Foi um passo necessário, importante, que bom que aconteceu, espero que não demore mais um ano para chegarmos ao nome do mandante, mas precisamos ter comprometimento com a verdade desses fatos.

RFI: Você tem esperança que os culpados sejam punidos ao final do processo?
MB: Meu projeto é de justiça, não é de vingança. Espero que as autoridades brasileiras consigam me acalentar nesse sentido. Porque se eu ainda me levanto por justiça, para lutar por justiça pela Marielle e pelo Anderson, é sem dúvida nenhuma porque eu ainda acredito nas nossas autoridades competentes e na Justiça brasileira. Espero que eles tenham compromisso e responsabilidade com a nossa democracia. A luta é incessante e não vejo outro caminho para o Estado brasileiro senão responder quem é que mandou matar Marielle, uma vez que a gente passa vergonha internacional aos olhos do mundo e passa atestado de incompetência por não conseguir solucionar esse crime.

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RFI: Alguns amigos seus e de Marielle, como o ex-deputado federal Jean Wyllys e a filósofa e escritora Marcia Tiburi, decidiram recentemente deixar o Brasil devido às ameaças de morte e assédio que, segundo eles, inviabilizava a vida no país. Você também sofre ameaças? Você considera a possibilidade do exílio?
MB: É lamentável que a gente tenha chegado a esse momento político, onde as pessoas tenham que se exilar, ficar longe de sua família e de seus amigos pelo simples fato de quererem continuar vivos. Eu sofro ameaças, sobretudo através de xingamentos nas ruas e nas redes sociais. Tenho uma medida cautelar fornecida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a OEA, estou dentro do programa de proteção e não tenho a menor pretensão de sair do meu país. Eu entendo a postura de cada um deles, acho legítimo, acho o medo legítimo, mas a noite do 14 de março [de 2018, quando Marielle Franco foi executada] me tirou todo e qualquer motivo para ter medo.

RFI: Você virou uma espécie de símbolo do ativismo brasileiro, com muitas bandeiras. O movimento feminista aprecia sua presença, assim como o movimento de direitos humanos, e a comunidade LGBT. Você incorporou essas lutas? Pretende de alguma forma continuar sendo uma liderança do ativismo brasileiro? Há ainda espaço no Brasil para essa militância ou a repressão tomou conta?
MB: Acho que existe uma repressão muito grande, mas também é preciso olhar para a potência da nossa resistência. A execução da Marielle tinha todos os motivos para ter nos deixado acuado e nos ter feito dar um passo atrás. E não foi o que aconteceu, muito pelo contrário. Nós avançamos. O movimento feminista avança. O movimento LGBT avança. Todas as pautas que Marielle encarnava enquanto defensora dos direitos humanos deram um passo à frente. A gente teve mulheres negras sendo democraticamente eleitas e ocupando espaços de poder, mulheres que se tornam essa campanha que chamam de Marielle-semente, Marielle-presente. Temos que considerar os avanços positivos. É óbvio que a gente tem uma onda de conservadorismo muito forte, mas também temos uma resistência muito forte. O movimento feminista hoje não tem a menor intenção de facilitar o retrocesso para esse governo.

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RFI: O Jean Wyllys disse que não precisava ser mártir, que o Brasil já tinha sua mártir, e que era Marielle Franco. Você concorda que Marielle seja uma mártir brasileira?
MB: Prefiro olhar para a imagem dela como um signo de esperança e de resistência. Ver a imagem de Marielle hoje sendo replicada por todo mundo e o que isso move, o espírito de solidariedade e resistência, para mim ressignificou a noite do 14 de março, não a aceitando apenas como uma noite de barbárie e violência, mas a ressignificado. Dessa forma, dizemos que não só a vida de Marielle não foi em vão, como a morte não o será. Então, eu prefiro olhar como signo de inspiração a essa revolução feminista que, para mim, está mais do que em curso.

RFI: As Marielles parecem ter se multiplicado, falo da presença da deputada federal eleita em 2018, a Áurea Carolina, mas também de outras ativistas eleitas para o legislativo brasileiro, como Renata Souza, Mônica Francisco e Dani Monteiro. Qual o maior legado deixado pela Marielle Franco na sua opinião?
MB: É um legado de inspiração e resistência. Essas mulheres tinham todos os motivos para se retirarem do campo político, de se sentirem ameaçadas. Mônica Francisco uma vez disse num discurso muito bem colocado que “a mulher preta já nasce com um alvo nas costas”. Elas viram isso concretizado na noite do 14 de março. Marielle era a única vereadora negra dentro da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, num ambiente machista, misógino, branco, heteronormativo. A presença dela por si só já era uma afronta naquela casa. Talíria Petroni e Áurea Carolina, que já estavam no espaço da política, são mulheres que foram eleitas agora para um cargo federal. Essa força e essa inspiração que a Marielle hoje representa são parte de um legado. Um legado que é levado por muitas pessoas. Essas mulheres são parte dessa construção. E também essa luta não começa na Marielle, e ela inclusive compreendia isso. Muitos corpos tombaram antes da Marielle para dar força a essa luta. Podemos ver então alguma beleza na força que nasce a partir da inspiração da imagem dela.

RFI: Você pensa em se candidatar?
MB: Minha prioridade hoje é a campanha Justiça por Marielle. Estou completamente imersa nisso, tanto a minha vida profissional como a minha vida pessoal foram completamente abandonadas nesses doze meses. É um número esgotante de viagens nacionais e internacionais, buscando dar mais visibilidade ao caso, buscando a preservação da história da Marielle. Não é mais só por ela, mas por tudo que ela representa, que não exista mais nenhuma Marielle tombando dessa forma e nenhuma Mônica sentindo a dor que eu senti ao longo desses doze meses. A gente faz política de muitas formas e em vários espaços e não necessariamente através da política institucional. Mas se isso for colocado em algum outro momento e eu achar que posso contribuir com responsabilidade, eu não vejo porque não [se candidatar].

RFI: Várias homenagens foram registradas em todo o mundo neste 1 ano sem Marielle Franco. Você esperava que isso tomasse essa dimensão mundial?
MB: Acho que nem nos cenários mais ambiciosos a gente poderia esperar isso. Obviamente, quem tramou essa execução da Marielle e essa violência toda contra ela também não esperava. É de certa forma muito emocionante toda essa repercussão mundial, até porque venho recebendo uma solidariedade também nesse campo internacional, nas redes sociais, nos abraços na rua. Não tenho a menor dúvida de que não seria possível continuar na luta se não fosse toda essa solidariedade que eu venho recebendo.

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