Justiça

Não existe generosidade maior que a irmandade entre mulheres negras

A partir de storytelling, Chiara Ramos trata dos desafios da mulher negra no sistema de justiça brasileiro e da força da irmandade

Abayomi Juristas Negras
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Nosso quilombo da Abayomi está em festa, pois tivemos 100% de aprovação na primeira fase do concurso da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, nas vagas reservadas para pessoas negras. Esse é o nosso primeiro concurso para carreiras e talvez você não tenha ideia do que esse resultado significa para nós; por essa razão, eu vou contar um pouco da nossa história, da nossa missão e do sonho ancestral pelo qual lutamos diariamente.

Nós nos encontramos na encruzilhada que intersecciona gênero e raça no árido caminho da advocacia patriarcal e colonialista de Pernambuco. Mas, antes de falar sobre isso, eu tenho que começar por mim e não, essa não é apenas uma tendência narcisista, pois a minha história é a história de várias mulheres negras no sistema de justiça. Somos sujeitas/pessoas coletivas, hoje eu compreendo isto com muita nitidez.

Além disso, essa narrativa começará em primeira pessoa, não apenas por orgulho, mas por eu ter entendido, sobretudo a partir das lições aprendidas com as Griots Conceição Evaristo e Lúcia dos Prazeres, que precisamos contar as nossas histórias, pois elas curam. O nascimento da Abayomi Juristas Negras se entrelaça com o renascimento de cada uma das suas integrantes, no entanto, agora eu apenas posso falar do meu.

Era 25 de julho de 2019, uma quinta-feira ensolarada, quando adentrei em um dos auditórios da OAB em Pernambuco e fui tomada de grande emoção.

Eu nunca tinha visto uma cena daquelas. Eu nunca me tinha sentido tão próxima de mim, da minha identidade e da minha própria história. O meu coração acelerou, as pernas ficaram bambas e as palavras me faltaram de início.

Eu vi dezenas de juristas com suas peles escuras em diversos tons, reluzindo naquele auditório impessoal, com a beleza do ouro de Oxum e a força da espada de Oyá. Imediatamente eu pensei: “onde vocês estiveram durante todo esse tempo?” Meus olhos encheram d’água, mas agora era de felicidade. Um filme se passou na minha cabeça.

Eu me sentei na cadeira de palestrante, olhei para aquelas mulheres e revivi vários momentos da minha vida. Eu lembrei de como eu saí dos engenhos de cana de açúcar e cheguei na capital, de como fui atleta bolsista em um dos melhores colégios da capital pernambucana, de como passei no vestibular de direito na federal e no concurso de procuradora federal, ainda antes de concluir a faculdade. Lembrei-me de como, em todos esses espaços, nenhuma daquelas mulheres esteve comigo. Nenhuma delas.

Muito falamos sobre a solidão da mulher negra, mas há uma tendência a reduzir esse sentimento a questões afetas ao amor-romântico, quando é muito mais que isto. Quando falamos em solidão da mulher negra, estamos falando também da solidão institucional daquelas poucas que conseguiram ascender e ocupar espaços de saber e poder em uma sociedade estruturada sobre o racismo patriarcal. Eu estava vivenciando uma crise existencial, e tudo o que eu sentia era solidão. Eu soube disso naquele exato momento.

Ao final daquele dia, eu abri meu coração para aquelas mulheres. Eu expliquei que eu venho de uma família inter-racial, violentada pelas políticas de branqueamento, o que significa dizer que eu cresci sem qualquer letramento racial, alienada da minha própria identidade.

Além disso, por uma sucessão de fatores, eu vivia cercada quase que exclusivamente por pessoas brancas. Isso porque eu estudei em colégios particulares e na universidade pública, antes da política de cotas, além de ter passado a integrar uma das principais carreiras jurídicas do país desde cedo, tornei-me procuradora federal aos 26 anos.

Eu pedi ajuda e fui prontamente resgatada, pois não existe generosidade maior que a das mulheres negras. Eu lembro exatamente o que eu disse: “eu estou à procura de mim e eu sei que estou em vocês”. Eu escrevo isso e me emociono. Sou eternamente grata, pois a partir dali a minha vida mudou completamente. Passei a estar rodeada de juristas negras e a ouvir seus relatos. E aquilo me inquietou, pois eram mulheres potentes, brilhantes e inteligentíssimas, que não estavam sendo valorizadas pelas grandes bancas de advocacia, que não estavam sendo remuneradas na advocacia autônoma e que continuavam sofrendo diversas violências nos corredores dos fóruns e tribunais.

Com lágrimas nos olhos, uma delas me contou que foi parada por um desembargador (um homem branco), que sobre as tranças ancestrais que coroavam a cabeça daquela guerreira, no corredor do Tribunal de Justiça de Pernambuco, indagou: “Você pensa que porque é negra pode usar o cabelo do jeito que quiser?”

Ela se sentiu diminuída naquele momento, porém eu tenho absoluta certeza de que, se fosse hoje, ela ergueria a sua cabeça e diria ao senhor desembargador: “Sim, eu tenho certeza de que por eu ser negra eu posso honrar as minhas ancestrais usando esse cabelo e vou imediatamente denunciar o senhor e o tribunal por racismo”. E talvez ela tenha a oportunidade de fazer isso em breve, mas de um outro lugar, do lugar de concursada, pois essa mulher negra foi uma das aprovadas hoje!

Teria muito mais para contar sobre esses dois anos, mas quero terminar esse texto dizendo que a troca foi e está sendo justa, em um modelo abençoado por Exú. Laroyê, Mojubá. Elas me ensinam sobre mim, devolvendo dia a dia a minha identidade roubada. E eu as ensino tudo o que aprendi com a branquitude, inclusive as principais estratégias para passar em concursos públicos, compartilhando ferramentas e informações privilegiadas, que só uma pequena parcela da população possui; justamente aquela parcela que frequentou os melhores colégios, as melhores faculdades e os melhores cursinhos preparatórios. Tudo isso potencializado pelas estratégias ancestrais que tenho aprendido e que tornam a metodologia Abayomi uma ferramenta de ocupação extremamente poderosa.

Queria também poder compartilhar a mesma facilidade para comprar os livros, pagar as inscrições, as passagens, a alimentação e as hospedagens, para seguir fazendo essas provas por todo o país, pois essas pessoas não têm o mérito de terem nascido herdeiras de patrimônios materiais. Por isso é importante fortalecermos a Abayomi Juristas Negras e seu fundo próprio, de maneira que a organização possa financiar essas potências negras.

Para tanto, contamos com cada uma e cada um de vocês. Compartilhem essa ideia, façam parte do nosso quilombo, fortaleçam a nossa causa e ajudem a enegrecer a justiça desse país.

A justiça é uma mulher negra.

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