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Brasil leva 11 anos para julgar um caso de tráfico de pessoas e 34,5% dos acusados acabam absolvidos

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Em 98% dos casos, o crime visa a exploração sexual das vítimas – Imagem: iStockphoto
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Tornou-se clichê dizer que, no Brasil, o crime compensa, mas a expressão cabe como luva nos julgamentos de acusados por tráfico de pessoas. É o que revela uma pesquisa realizada pela Universidade Federal de Minas Gerais, em parceria com a Organização Internacional de Migração (OIM), o Conselho Nacional de Justiça, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região e a Associação dos Juí­zes Federais do Brasil. Com base nos processos examinados pela segunda instância da Justiça, o estudo analisa 142 casos relacionados a crimes de tráfico internacional de humanos, envolvendo 350 réus e 714 vítimas. O tempo médio de tramitação das ações entre a data em que o crime é registrado até o trânsito em julgado, englobando tanto a fase de investigação quanto a fase processual, é de quase 11 anos, levando à prescrição de muitos dos delitos e permitindo que os criminosos continuem agindo impunemente no “negócio” que parece ser promissor.

Um dos episódios mais famosos é o da quadrilha liderada por Jiselda Salbu, a Gigi, apontada pela PF como a maior cafetina do País, e que hoje ostenta o título de baronesa na Noruega. Ela chegou a ser presa e julgada por formação de quadrilha e tráfico de mulheres para exploração sexual e prostituição. O caso chegou ao STF, mas, antes do julgamento na Corte, a baronesa foi absolvida pela Justiça Federal paulista e migrou para o país nórdico. Situação semelhante é a das irmãs goianas Zenaide e Zenilde Borges, residentes na Espanha. Apontadas como chefes de quadrilha especializada no tráfico de mulheres, elas foram condenadas pela Justiça brasileira, mas vivem livremente na Europa, depois que o governo espanhol negou o pedido de extradição, sob a alegação de que elas foram julgadas pelos mesmos fatos naquele país e acabaram absolvidas.

Tanto o caso da baronesa Gigi quanto o das irmãs goianas constam no relatório da pesquisa “Tráfico Internacional de ­Pessoas: Crime em Movimento, Justiça em Espera”, desenvolvida pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da UFMG. O estudo mostra que, dos 350 réus, os processos de pelo menos 317 deles haviam transitado em julgado, dos quais 120 (34,29%) foram absolvidos de todos os crimes a eles imputados. Outros 121 acusados (34,57%) foram condenados por todos os crimes denunciados e 70 (20%) por pelo menos um dos crimes. O processo de quatro réus foi extinto sem resolução do mérito. Apesar da condenação, a maioria dos acusados continua impune e, enquanto tramitavam os processos, eles continuavam agindo livremente.

O maior problema é o tempo de tramitação das ações, o que dificulta a produção de provas para a Justiça. Pela demora, muitas vítimas nem sequer são localizadas ou se negam a prestar depoimento por medo, trauma, vergonha ou por não acreditarem no Judiciário brasileiro. Embora a maioria absoluta dos 142 processos analisados na pesquisa da UFMG trate de exploração sexual, outros tipos de tráfico internacional de pessoas foram identificados como trabalho escravo, adoção ilegal e até mesmo remoção de órgãos.

“O Judiciário tem um problema grave de gestão, de organização, o que traz graves consequências. Testemunhamos na pesquisa o problema da prescrição dos crimes, que é quando o Estado demora para punir e ajuda na absolvição dos acusados por insuficiência de provas. Em muitos casos, nenhuma das vítimas é localizada, deixando de produzir provas. Aí o juiz fala que não tem como condenar, e com razão, porque a lei exige a comprovação do crime”, destaca um dos coordenadores da pesquisa, Carlos Haddad, que também é juiz federal. “Não tem muito sentido um processo tramitar por mais de dez anos. Talvez esses casos não fossem prioridade lá na vara, entre milhares de outros.”

“Em muitos casos, nenhuma das vítimas é localizada”, lamenta Carlos Haddad, um dos coordenadores do estudo da UFMG

Lívia Miraglia, outra coordenadora do estudo, chama atenção para o fato de que 98% do tráfico internacional partindo do Brasil tem como atividade a exploração sexual e as vítimas são quase sempre mulheres (96,36%). Dentre os países de destino, a Espanha lidera o ranking, seguido por Portugal e Itália. Um fato curioso é que a maior parte dos aliciadores também é de mulheres (56,45%). A pesquisadora classifica o tráfico de pessoas como crime de cifra invisível, diante da grande subnotificação de casos. “Estamos falando de um crime que não aparece, que praticamente não chega ao Judiciário. Normalmente, quando uma rede de tráfico é desarticulada, não se consegue identificar todas as vítimas”, diz Miraglia.

O modus operandi do tráfico internacional de pessoas repete-se internamente. É cada vez mais comum pessoas, principalmente entre as mais pobres, serem aliciadas e traficadas de uma região para outra com a promessa de vida melhor. Ao chegar ao destino, na maioria das vezes, elas são submetidas ao trabalho escravo ou à prostituição, como no caso de uma adolescente de 15 anos que recebeu a proposta para trabalhar como cozinheira e foi obrigada a dar expediente em um cabaré em um garimpo em Roraima, caso que veio à tona no dia 14 de março. Dois homens e uma mulher teriam oferecido à jovem uma proposta para trabalhar como cozinheira, com salário mensal de 5,8 mil reais. A menina foi, porém, mantida em cárcere privado e obrigada a fazer sexo com os clientes do estabelecimento.

Para Marie Henriqueta Cavalcante, do Instituto de Direitos Humanos Dom José Luís Azcona, com forte atuação no Pará, o tráfico de pessoas está fincado em três pilares, começando pela ­impunidade dos criminosos, passando pela desigualdade social, até a falta de oportunidades para as pessoas empobrecidas. “O tráfico parte dessa falta de oportunidades. A pobreza, a miséria produzida e reproduzida, assim como a baixa escolaridade e a desinformação são as maiores causadoras do problema, além da migração, que envolve muita gente em situação de extrema vulnerabilidade.”

Giulia Aguiar Camporez, coordenadora de Proteção da OIM, lembra que o Brasil é signatário do Protocolo de Palermo, que trata do problema em nível internacional, além de ter uma legislação rígida de enfrentamento do tráfico de pessoas, o artigo 149-A do Código Penal, a prever pena de até oito anos de reclusão aos infratores. Ela cita também o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e confirma que um dos facilitadores do crime é o próprio processo migratório. “A condição migratória é um fator de risco, desde o deslocamento até a chegada aos países de destino, principalmente em relação às pessoas em situação de vulnerabilidade. Isso merece atenção especial nas políticas de enfrentamento.” •

Publicado na edição n° 1252 de CartaCapital, em 29 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mercadoria humana’

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