Justiça

Flávio Bolsonaro ataca direitos humanos e os usa para se defender

Família que fez capital político com senso comum sobre direitos humanos agora se vê com cautela e pedido de respeito aos seus direitos

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As linhas de defesa adotadas pelo bolsonarismo para defender Flávio Bolsonaro vêm variando entre a necessidade de apurar antes de punir e as tentativas de desvinculá-lo do pai e do Palácio do Planalto. Em entrevista à agência Bloomberg, Jair falou que se “por acaso ele errou e isso for provado, lamento como pai, mas ele terá de pagar o preço por esses atos que não podemos aceitar”. O general Mourão, seu vice, pulou nesse bonde e afirmou que o único problema de Flávio é o sobrenome.

Na medida em que a situação de Flávio se complica vão crescendo os sinais de que, para safar o patriarca, há a real possibilidade de seu herdeiro mais velho ser abandonado no caminho. Não satisfeito, o “garoto”, como o chama seu pai apesar de beirar aos 40, resolveu pisar no acelerador da crise ao conseguir do ministro Fux uma decisão suspendendo as apurações acerca da nebulosa relação entre ele e o ex-assessor Queiroz.

Flávio alegou ao STF que o foro privilegiado não permite que, enquanto senador, seja investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. Pediu também a anulação das provas colhidas até então. Fora dos autos, calou-se, apesar de sua conhecida tagarelice nas redes sociais. As exceções foram as entrevistas dadas às chapas-brancas Record, SBT e RedeTV!, linhas auxiliares do bolsonarismo desde que o capitão passou a despontar como favorito para vencer as eleições. Fora isso, Flávio parou até de promover um dos principais hobbies da família: ir para cima dos direitos humanos.

O completo desprezo que o clã costuma demonstrar em relação aos direitos humanos não é nenhuma novidade. Carlos, seu irmão, já os qualificou de “esterco da vagabundagem”. O caçula Eduardo afirmou no Twitter que servem de adubo a essa mesma vagabundagem. O próprio Flávio já reclamou da “exploração midiática da aplicação de direitos humanos para o benefício do crime e dos criminosos”. Jair, então, nem se fala.

A narrativa é muito clara: direitos humanos são sinônimo de direitos de bandidos. Não tem conversa. Mas o que Flávio, Queiroz e companhia aparentam não saber é que, para se defenderem das cabeludas suspeitas que lhe caem nos ombros, vêm se valendo dos mesmos direitos humanos que costumam esculhambar.

O primeiro deles é a presunção de inocência. Aquela que o STF, sob a regência do bruxo do neoconstitucionalismo Luís Roberto Barroso, sepultou no final de 2016 para saciar a fome da Lava Jato por pedaços da Constituição. É provável que o senador, junto com seu pai, seus irmãos e a horda ensandecida que os segue ainda não saibam, mas o direito de não ser julgado e condenado prematuramente, antes de qualquer direito à defesa, se encontra previsto no artigo 11 da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948: toda a pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas.

Leia também: Eleição de Witzel no Rio uniu Flávio Bolsonaro e milícia denunciada

Em 2015, a juíza Daniela Barbosa Assumpção de Souza foi agredida por policiais militares presos no Batalhão Especial Prisional de Benfica, na zona norte do Rio, durante uma fiscalização na unidade prisional.  Os detentos impediram que a magistrada fizesse a revista em uma das galerias, agredindo-a ao ponto de lhe rasgarem a camisa. Solidário aos agressores, Flávio sacou do bolso a presunção de inocência para defendê-los, provando que se trata de uma velha conhecida sua. Talvez só não tenha ideia de que ela faz parte dos direitos humanos que ele e sua família tanto detratam.

Mas Flávio não se limitou a abraçar apenas a presunção de inocência para sobreviver aos fortíssimos indícios de envolvimento em maracutaias que vão desde à apropriação ilegal de rendimentos de assessores ao envolvimento afetivo e profissional com milicianos suspeitos de matar Marielle. Ao solicitar ao STF que sua investigação saísse das instâncias estaduais e corresse perante a suprema corte, acabou fazendo uso de outro direito humano previsto pelo mesmo artigo 11: o devido processo legal, ou o direito ser processado em conformidade com regras preestabelecidas, evitando surpresas no decorrer do processo.

O processo em si se apresenta como uma grande conquista civilizatória no sentido de ser a maior garantia do réu, que tem o direito de ser processado sem sustos e sem normas criadas ao sabor das oscilações de humor de juízes. O próprio artigo 11 enuncia que só é possível ser considerado culpado depois da culpa ter sido legalmente provada por meio de um processo onde todas as garantias necessárias de defesa tenham sido asseguradas. É o que nossa Constituição também prevê em seu artigo 5º, incisos LIV e LVII – ou ao menos previa até Barroso e companhia terem lançado mão de firulas interpretativas para decidirem que não é bem assim.

A rigor os direitos humanos são simples. São o direito à vida, à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, à cultura, etc. Para os Bolsonaro temos no Brasil um excesso de direitos humanos. Contudo, sua própria definição deixa claro que o que temos na verdade é uma vergonhosa escassez desses direitos.

Leia também: Seis vezes em que a família Bolsonaro foi contra o foro especial

É ingênuo achar que a restrição de seu conceito é fruto apenas da ignorância. Em artigo publicado em julho de 1986 na Folha de S. Paulo, Marilena Chauí explica como os direitos humanos acabaram por se limitar a um único aspecto: o da segurança patrimonial e pessoal contra a violência e a criminalidade, reduzindo-se na fala da extrema direita ao lema “proteger o bandido contra a vítima”.

A estratégica redução do assunto à questão policial e carcerária é crucial para a consolidação do discurso segundo o qual ao Estado cabe apenas garantir a proteção da vida e da propriedade. Nada mais. A emenda do teto de gastos, responsável por sufocar o investimento em áreas como saúde e educação até 2036, é a mais pornográfica concretização dessa ideia, que têm como consequência direta o agigantamento do Estado policial.

Numa sociedade como a brasileira, a luta por direitos só pode ser uma luta popular, pois somente os dominados e explorados não possuem direitos, conclui Marilena. Assim, quando os dominantes se valem do discurso do medo e restringem tais direitos à perspectiva policial e carcerária, buscam exatamente invalidar as lutas populares e democráticas pelo reconhecimento dos direitos humanos em sua verdadeira amplitude.

Flávio disse que, apesar de ser contra o foro privilegiado, não teve escolha ao utilizá-lo para tentar mandar as investigações para o STF. Afinal, ele é senador e está na lei que é lá onde deve ser investigado. Da mesma forma, não é possível renunciar, relativizar e abrir mão dos direitos humanos se você é um ser humano. A lógica é a mesma.

Os Bolsonaro certamente sabem disso. Mas como aderir à Civilização poderia gerar a implosão de parte de sua base de sustentação e lhes tirar um poderoso ativo eleitoral, é mais conveniente ficar reproduzindo sensos comuns e procurando álibis conspiratórios nos moldes dos delírios olavianos do chanceler Ernesto Araújo e do ministro da educação Ricardo Vélez Rodríguez. Enquanto isso, Flávio prossegue dando indícios de que não pretende tão cedo parar de comer no prato que cuspiu.  Graças aos direitos humanos.

Gustavo Freire Barbosa é advogado

As linhas de defesa adotadas pelo bolsonarismo para defender Flávio Bolsonaro vêm variando entre a necessidade de apurar antes de punir e as tentativas de desvinculá-lo do pai e do Palácio do Planalto. Em entrevista à agência Bloomberg, Jair falou que se “por acaso ele errou e isso for provado, lamento como pai, mas ele terá de pagar o preço por esses atos que não podemos aceitar”. O general Mourão, seu vice, pulou nesse bonde e afirmou que o único problema de Flávio é o sobrenome.

Na medida em que a situação de Flávio se complica vão crescendo os sinais de que, para safar o patriarca, há a real possibilidade de seu herdeiro mais velho ser abandonado no caminho. Não satisfeito, o “garoto”, como o chama seu pai apesar de beirar aos 40, resolveu pisar no acelerador da crise ao conseguir do ministro Fux uma decisão suspendendo as apurações acerca da nebulosa relação entre ele e o ex-assessor Queiroz.

Flávio alegou ao STF que o foro privilegiado não permite que, enquanto senador, seja investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. Pediu também a anulação das provas colhidas até então. Fora dos autos, calou-se, apesar de sua conhecida tagarelice nas redes sociais. As exceções foram as entrevistas dadas às chapas-brancas Record, SBT e RedeTV!, linhas auxiliares do bolsonarismo desde que o capitão passou a despontar como favorito para vencer as eleições. Fora isso, Flávio parou até de promover um dos principais hobbies da família: ir para cima dos direitos humanos.

O completo desprezo que o clã costuma demonstrar em relação aos direitos humanos não é nenhuma novidade. Carlos, seu irmão, já os qualificou de “esterco da vagabundagem”. O caçula Eduardo afirmou no Twitter que servem de adubo a essa mesma vagabundagem. O próprio Flávio já reclamou da “exploração midiática da aplicação de direitos humanos para o benefício do crime e dos criminosos”. Jair, então, nem se fala.

A narrativa é muito clara: direitos humanos são sinônimo de direitos de bandidos. Não tem conversa. Mas o que Flávio, Queiroz e companhia aparentam não saber é que, para se defenderem das cabeludas suspeitas que lhe caem nos ombros, vêm se valendo dos mesmos direitos humanos que costumam esculhambar.

O primeiro deles é a presunção de inocência. Aquela que o STF, sob a regência do bruxo do neoconstitucionalismo Luís Roberto Barroso, sepultou no final de 2016 para saciar a fome da Lava Jato por pedaços da Constituição. É provável que o senador, junto com seu pai, seus irmãos e a horda ensandecida que os segue ainda não saibam, mas o direito de não ser julgado e condenado prematuramente, antes de qualquer direito à defesa, se encontra previsto no artigo 11 da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948: toda a pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas.

Em 2015, a juíza Daniela Barbosa Assumpção de Souza foi agredida por policiais militares presos no Batalhão Especial Prisional de Benfica, na zona norte do Rio, durante uma fiscalização na unidade prisional.  Os detentos impediram que a magistrada fizesse a revista em uma das galerias, agredindo-a ao ponto de lhe rasgarem a camisa. Solidário aos agressores, Flávio sacou do bolso a presunção de inocência para defendê-los, provando que se trata de uma velha conhecida sua. Talvez só não tenha ideia de que ela faz parte dos direitos humanos que ele e sua família tanto detratam.

Mas Flávio não se limitou a abraçar apenas a presunção de inocência para sobreviver aos fortíssimos indícios de envolvimento em maracutaias que vão desde à apropriação ilegal de rendimentos de assessores ao envolvimento afetivo e profissional com milicianos suspeitos de matar Marielle. Ao solicitar ao STF que sua investigação saísse das instâncias estaduais e corresse perante a suprema corte, acabou fazendo uso de outro direito humano previsto pelo mesmo artigo 11: o devido processo legal, ou o direito ser processado em conformidade com regras preestabelecidas, evitando surpresas no decorrer do processo.

O processo em si se apresenta como uma grande conquista civilizatória no sentido de ser a maior garantia do réu, que tem o direito de ser processado sem sustos e sem normas criadas ao sabor das oscilações de humor de juízes. O próprio artigo 11 enuncia que só é possível ser considerado culpado depois da culpa ter sido legalmente provada por meio de um processo onde todas as garantias necessárias de defesa tenham sido asseguradas. É o que nossa Constituição também prevê em seu artigo 5º, incisos LIV e LVII – ou ao menos previa até Barroso e companhia terem lançado mão de firulas interpretativas para decidirem que não é bem assim.

A rigor os direitos humanos são simples. São o direito à vida, à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, à cultura, etc. Para os Bolsonaro temos no Brasil um excesso de direitos humanos. Contudo, sua própria definição deixa claro que o que temos na verdade é uma vergonhosa escassez desses direitos.

É ingênuo achar que a restrição de seu conceito é fruto apenas da ignorância. Em artigo publicado em julho de 1986 na Folha de S. Paulo, Marilena Chauí explica como os direitos humanos acabaram por se limitar a um único aspecto: o da segurança patrimonial e pessoal contra a violência e a criminalidade, reduzindo-se na fala da extrema direita ao lema “proteger o bandido contra a vítima”.

A estratégica redução do assunto à questão policial e carcerária é crucial para a consolidação do discurso segundo o qual ao Estado cabe apenas garantir a proteção da vida e da propriedade. Nada mais. A emenda do teto de gastos, responsável por sufocar o investimento em áreas como saúde e educação até 2036, é a mais pornográfica concretização dessa ideia, que têm como consequência direta o agigantamento do Estado policial.

Numa sociedade como a brasileira, a luta por direitos só pode ser uma luta popular, pois somente os dominados e explorados não possuem direitos, conclui Marilena. Assim, quando os dominantes se valem do discurso do medo e restringem tais direitos à perspectiva policial e carcerária, buscam exatamente invalidar as lutas populares e democráticas pelo reconhecimento dos direitos humanos em sua verdadeira amplitude.

Flávio disse que, apesar de ser contra o foro privilegiado, não teve escolha ao utilizá-lo para tentar mandar as investigações para o STF. Afinal, ele é senador e está na lei que é lá onde deve ser investigado. Da mesma forma, não é possível renunciar, relativizar e abrir mão dos direitos humanos se você é um ser humano. A lógica é a mesma.

Os Bolsonaro certamente sabem disso. Mas como aderir à Civilização poderia gerar a implosão de parte de sua base de sustentação e lhes tirar um poderoso ativo eleitoral, é mais conveniente ficar reproduzindo sensos comuns e procurando álibis conspiratórios nos moldes dos delírios olavianos do chanceler Ernesto Araújo e do ministro da educação Ricardo Vélez Rodríguez. Enquanto isso, Flávio prossegue dando indícios de que não pretende tão cedo parar de comer no prato que cuspiu.  Graças aos direitos humanos.

Gustavo Freire Barbosa é advogado

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