CartaCapital

Entenda porque é grave a quebra de sigilo de escritório de advocacia

Quando limites são quebrados e a Constituição violada, abre-se espaço para puro arbítrio

Apoie Siga-nos no

Por Mariângela Magalhães

A Constituição brasileira contém as características mais importantes do nosso país, e estabelece, entre outras coisas, os limites da atuação do Estado, a composição dos seus Poderes estruturantes e as diretrizes programáticas de toda a ordem jurídica.

Ao tratar da administração da Justiça, no mesmo patamar em que dispõe sobre o Poder Judiciário e o Ministério Público, declara que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei” (art. 133).

Abaixo da Constituição, mas em total concordância com seus parâmetros, o art. 7º da Lei n. 8.906/94 elenca, entre os direitos do advogado, “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”, além, também, da possibilidade de “comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis”.

Numa primeira leitura, para um desavisado, essas garantias poderiam soar como um tratamento privilegiado e injustificado dispensado a determinado grupo de profissionais. Essa possível interpretação poderia, ainda, ser vista com maior desconfiança quando se trata de advogado que atua na área criminal, em que a maioria de seus clientes são pessoas acusadas da prática de infração penal e por isso investigadas ou processadas.

Leia também: O Ato Institucional nº 1 de Sérgio Moro

Mariz de Oliveira, advogado criminalista, teve o sigilo de seu escritório quebrado pela Lava Jato. Foto: Agência Brasil

O equívoco desse pensamento está, de um lado, na falta de conhecimento acerca da imprescindibilidade do advogado para a própria realização da Justiça; de outro lado, há uma comum incompreensão da função do advogado criminalista, muitas vezes tendo sua atuação confundida com o comportamento do cliente.

Quando a Constituição estabelece que vivemos num Estado Democrático de Direito, está se referindo a um Estado em que inúmeros direitos e garantias individuais são assegurados a todas as pessoas, em que há uma divisão entre os Poderes de modo a interagirem entre si de modo harmônico e independente, em que valores como a liberdade, a dignidade e a prevalência dos direitos humanos fazem-se presentes.

No que diz respeito à Justiça – e mais especificamente à Justiça criminal –, nossa Constituição não deixa dúvida sobre os direitos dos acusados e dos condenados, traz diretrizes a serem obedecidas durante todo o procedimento investigatório e judicial, tais como o direito à ampla defesa, a garantia da legalidade penal, o princípio do juiz natural, elenco de penas proibidas e regras básicas de cumprimento da sanção, o princípio da presunção de inocência antes do trânsito em julgado da decisão, a proibição de provas ilícitas.

Leia também: Para advogado, projeto 'anticrime' de Moro é populismo penal

A existência de tais diretrizes não só deve conferir segurança jurídica e previsibilidade dos procedimentos, mas também demonstram o comprometimento que nossas instituições devem ter em relação aos limites do poder punitivo. Apesar de ser interesse da sociedade que os autores de infrações penais sejam punidos pelas suas condutas, é igualmente interesse de todos que não haja abuso por parte das autoridades estatais, colocando em risco importantes conquistas democráticas também presentes no texto constitucional.

Mais do que isso, o mesmo interesse que há em relação à punição dos culpados deve haver quanto à absolvição dos inocentes. Não é crível que, por maior que seja a sanha punitiva da sociedade, a satisfação por ver um réu inocente condenado seja maior do que vê-lo absolvido.

Dessa forma, resta-nos compreender a importância do processo judicial e das investigações preliminares, uma vez que, por meio de regras previamente determinadas e do respeito aos direitos de todas as partes envolvidas, busca-se garantir a melhor qualidade das provas colhidas e, consequentemente, uma boa decisão.

Compreende-se, assim, a importância do juiz ser imparcial, sem nenhum envolvimento com as partes processuais e que balize suas decisões pelas provas produzidas no processo. Da mesma forma, imprescindível que o Ministério Público – órgão da acusação – tenha o poder de acompanhar as investigações preliminares, requisitar informações e esclarecimentos necessários à sua convicção, assim como, tendo interesse na apuração da verdade, possa solicitar a produção de provas e apresentar sua tese acusatória.

Leia também: Para especialista, PL Anticrime de Moro deve aumentar as injustiças

O advogado, por sua vez, ao representar o acusado de uma infração penal, deve igualmente ter o direito de acompanhar as investigações, estar presente durante todo o processo e solicitar as provas que entender necessárias para a defesa do seu cliente. Assim como o Ministério Público, o defensor também tem a oportunidade de apresentar as razões que subsidiam a tese sustentada, que pode ser não só a absolvição do réu, mas também a desclassificação da acusação para uma infração mais leve ou aplicação de pena menos restritiva da liberdade do que a prisão, por exemplo.

Para que o advogado possa melhor representar os interesses do acusado, indispensável é poder manter contato com o cliente, conversar sobre os fatos, saber de detalhes do caso concreto e discutir a estratégia a ser seguida. Essas condutas praticadas pelo advogado são, portanto, essenciais para a boa execução de sua função. Numa analogia, é o mesmo que se dá em relação ao trabalho do médico, uma vez que também ele, para melhor exercer seu ofício, precisa ter contato com o paciente, ouvir dele os sintomas e perguntar sobre seus hábitos, além de expor os tratamentos possíveis para juntos decidirem o caminho a seguir.

Não por acaso, tanto o advogado como o médico são exemplos de profissionais que contam com a garantia do segredo profissional no exercício de suas atividades. Ao cliente ou paciente assegura-se que nada do que ali for dito será tornado público, proporcionando certa tranquilidade para confiarem ao profissional as informações necessárias para que melhor seja atendido. Ao profissional, por sua vez, possibilita-se o bom exercício de sua atividade, uma vez que quanto mais informações tiver, melhor deverá ser seu trabalho.

Outro aspecto que também se encontra protegido na relação entre o profissional e seu cliente diz respeito à cobrança e ao pagamento de honorários. O estabelecimento de valores e a forma de seu pagamento dizem respeito exclusivamente às partes contratantes, e com relação a isso também prevalece a inviolabilidade da atividade profissional.

Leia também: Quebra de sigilo de Mariz de Oliveira causa espanto em meio jurídico

No caso do advogado, se assim não fosse, nenhum cidadão teria tranquilidade para contratar o defensor que quisesse, pagando os honorários que achasse pertinentes, pois saberia que a qualquer momento essas informações poderiam ser devassadas pelas autoridades e eventualmente utilizadas contra si.

Vê-se, portanto, que a proteção do segredo profissional é algo tão importante que o próprio código penal prevê, como crime, a sua violação (art. 154). Quando se trata do sigilo do advogado, além de ser uma garantia do cliente, trata-se de garantia a toda a sociedade, no sentido de assegurar que o profissional terá a plena possibilidade de executar seu trabalho da melhor maneira possível, impactando diretamente na decisão judicial.

A importância do trabalho do advogado para a atuação do Poder Judiciário é, portanto, evidente. Sua atividade é das mais relevantes para a aplicação do direito, a ponto da figura do advogado vir especificada na Constituição como uma das funções essenciais à Justiça.

Apesar de tudo isso, no caso específico do advogado no processo criminal é compreensível que o leigo eventualmente tenha dificuldade em diferenciar a atuação do profissional em relação ao seu cliente. Embora seja claro que sua função não é endossar o que foi praticado pelo acusado, mas buscar nos fatos e no direito a melhor defesa ao seu cliente, não surpreende a eventual mistura feita pela população entre essas duas figuras, especialmente num contexto em que programas televisivos voltados à execração pública de suspeitos estimulam seu pré-julgamento e a demonização de quem ousa defendê-los.

Não há dúvida de que é preocupante a postura de significativa parcela da sociedade que, por não compreender a importância das garantias constitucionais para o exercício da advocacia criminal, aplaude a violação da atividade profissional dos advogados por meio da quebra de sigilo bancário ou telefônico, por exemplo. Em relação a esse comportamento – próprio de quem não compreendeu o risco gerado à própria Justiça, ao Estado de Direito e a todas as pessoas que eventualmente sujeitas à investigação ou processo –, necessário se faz pensar em formas de mudar essa percepção, com ações educativas voltadas para esse fim.

Mais séria, no entanto, é a postura de quem tem formação jurídica e exerce cargo público encarregado de tutelar as garantias constitucionais e os valores do Estado de Direito. Quando o Ministério Público requer a quebra de sigilo bancário de escritório de advocacia encarregado de defender determinado cliente, a fim de obter “provas” de crimes, age exatamente na contramão daquilo que deveria fazer.

Uma vez que a Constituição (art. 127) estabelece que tal instituição é “essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, causa espanto que aceite que seus membros atuem não só em desconformidade com sua vocação, mas com a própria Constituição.

Da mesma forma, diante de pedido tão contrastante com os valores do Estado de Direito, que leva à produção de prova constitucionalmente ilícita, igualmente incompreensível é a atitude do Poder Judiciário quando defere a solicitação do Ministério Público.

Com relação a essas instituições, não há que se falar em desconhecimento da Constituição, dos limites de sua atuação ou da ilicitude em que consiste uma prova produzida a partir da violação de direitos de advogados. Não deveria também ser necessário lembrá-las sobre a importância do defensor ou sobre a não confusão de sua atividade com a dos clientes.

Diante da notícia divulgada no final da semana passada de que um dos mais respeitados advogados criminais do Brasil teve seu sigilo bancário violado a fim de se descobrir quem estaria pagando pela defesa de um de seus clientes, é de se questionar a qual Constituição e a qual modelo de Estado o Ministério Público e o Judiciário estão servindo.

Talvez seja o mesmo em que o Ministro da Justiça propõe, como forma de melhorar a segurança de presídios, restrições ao atendimento de advogados com seus clientes presos e possibilidade de gravação da conversa entre eles – o que passa longe do Estado Democrático de Direito delineado na Constituição brasileira de 1988.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo