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O Ato Institucional nº 1 de Sérgio Moro

Somente uma pessoa ingênua poderia esperar diferente do que autoritarismo com camadas de baixo e amizade com camadas de cima por Sergio Moro

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* Por Gustavo Freire Barbosa

Desde muito antes de sua vitória, Bolsonaro fez questão de deixar claro que está longe de ser um entusiasta da razão, aqui entendida em sua definição mais vulgar: a possibilidade de chegar a conclusões a partir de explicações concretas e racionais para causas e efeitos.

Os surtos mccartistas de Veléz Rodríguez, ministro da educação, e a paranoia globalista de Ernesto Araújo, titular do Itamaraty, definem com precisão como funciona um governo que vê em Olavo de Carvalho o seu Farol de Alexandria. Completando o trio está a ministra Damares Alves, outra caricatura da obsessão do bolsonarismo com obscurantismos morais que, junto com o medo de Marx, ajuda a criar um  terreno fértil para que Paulo Guedes e Sérgio Moro afiem suas garras sem serem perturbados.

Alguns inocentes poderiam achar que Moro seria uma espécie de reserva moral e de bom senso na brancaleônica horda bolsonarista – um pessoal meio estranho, anticomunista, que vai à China conhecer suas tecnologias e volta falando que lá há um “socialismo light”, seja lá o que isso signifique.

Em um soluço iluminista, o ex-juiz se disse contra o enquadramento de movimentos sociais enquanto organizações terroristas. O fato de ter sido professor universitário é um elemento de sua história que poderia, vamos lá, fazer achar que poderia lhe caber o papel de dique aos delírios de Ernesto Araújo e Damares e ao anticomunismo empoeirado de Vélez Rodríguez – à corrupção não mais, evidentemente, como fez questão de demonstrar com o perdão dado a Onyx Lorenzoni após este ter confessado que fez caixa 2 em sua campanha.

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O papel que originariamente caberia a Moro, contudo, vem sendo do vice-presidente Hamilton Mourão: sensato, moderado, repleto de boas intenções e da plena confiança dos rebentos do mandatário apesar de suas recentes, inéditas e insuspeitas inclinações soviético-abortistas.

Mas só inocentes ou desinformados poderiam jogar nas costas de Moro o papel de fiador da razão após o rigor monárquico e absolutista com que conduziu os processos da operação Lava Jato e, em especial, os do ex-presidente Lula, substituindo a lei e as provas pelo seu senso moral de justiça que, mais à frente, mostrou-se alinhadíssimo com as bizarrices do atual presidente da república. Quer algo menos iluminista que isso?

Ao apresentar seu “pacote anticrime” na Câmara dos Deputados, Moro passou o recibo de sua debilidade constitucional ao se adiantar à enxurrada de críticas que virá de um dos alvos preferenciais do seu chefe: a universidade (pública, de preferência). O ex-magistrado disse logo no início que a proposta não foi feita para agradar professores universitários, essa categoria abjeta de comentaristas inconvenientes e metidos.

Acreditar que a razão virá de alguém com formação jurídica é outra premissa insustentável diante das várias experiências históricas que demonstram que é exatamente desse pessoal que a rebordosa autoritária aparece galopando livre, leve e solta.

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Gama e Silva, professor da Faculdade de Direito da USP e ministro da justiça de Costa e Silva, por exemplo, foi um dos grandes e ilustres entusiastas do AI-5. Na reunião do alto-comando no final de 1968, chegou a sugerir o recesso do Supremo Tribunal Federal e o fechamento definitivo do Congresso Nacional, das assembleias estaduais e das câmaras municipais.

No mesmo ano ocorreu a 43ª Sessão do Conselho de Segurança Nacional, na qual foi votado o AI-5. Nela, o vice-presidente Pedro Aleixo, único voto contrário, mencionou a palavra maldita que nenhum dos civis e militares presentes tiveram a coragem de falar: “da Constituição que é, antes de tudo, um instrumento de garantia dos direitos da pessoa humana e da garantia dos direitos políticos, não sobra absolutamente nada (…) adotado este caminho, é que estaremos com uma aparente ressalva da existência de vestígios dos poderes constitucionais decorrentes da Constituição de 24-1-67, e instituindo um processo equivalente a uma própria ditadura”.

Em “1968, o ano que não terminou”, Zuenir Ventura narra que na reunião em que se tratou do AI-5 podia-se fingir qualquer reação, menos ingenuidade; todos sabiam que aquele ato significava o começo de uma ditadura explícita e declarada, o golpe dentro do golpe. O “combate à contrarrevolução” era o que o justificava.

No meio do emaranhado de certezas dos que estavam presentes, o ministro Hélio Beltrão pediu cuidado na aplicação da medida: “é na execução dela que se revelará seu conteúdo antidemocrático, ditatorial ou arbitrário”. As precauções de Beltrão não levaram em consideração que o AI-5 estava sendo editado não para proteger inocentes, mas para transformá-los em suspeitos ou culpados, conclui Zuenir. Há diferença no pacote anticrime de Moro?

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Moro floreia seu contraproducente mais-do-mesmo pacote com margaridas constitucionais que não se seguram em pé na primeira lufada epistemológica.

Nesse sentido, a previsão de que o medo, a surpresa e a violenta emoção passam a afastar a possibilidade de policiais cumprirem pena pelos crimes que eventualmente cometerem é um exemplo do uso estratégico de conceitos fluídos, subjetivos e manipuláveis a serem usados de acordo com a conveniência ideológica de quem os aplica (no caso, seus ex-colegas da magistratura).

A perversão da proposta prossegue no cínico fechar de olhos para os tenebrosos números de nossas periferias: a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil.

Friso: a quem Moro quer agradar com a licença para matar que seu projeto propõe para policiais, ampliando a hipótese de legítima defesa? Será que lhe sensibiliza o fato da polícia no Brasil ser a que mais mata e a que mais morre no mundo? Ou não faz diferença o fato de, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, termos 175 assassinatos por dia, dos quais 14 cometidos por policiais, sem que haja o decréscimo de uma gota de criminalidade? Vai seguir o caminho de seu chefe e brigar com os números?

Ainda: como algo pode ser tachado de “anticrime” ao mesmo tempo que amplia as situações nas quais crimes podem ser cometidos sem punição? Em 1984, George Orwell define o duplipensar como a possibilidade de acreditar simultaneamente em coisas antagônicas. Moro é uma das provas de como a realidade muitas vezes faz a ficção comer poeira.

No livro “A ditadura envergonhada”, primeiro de sua famosa série, Elio Gaspari explica que a turma de Castelo Branco em 1964 queria combater a corrupção e a subversão. Mas como a retórica moralista se mostrou insuficiente para enfrentar a primeira, entranhada mesmo no alto oficialato, jogaram todas as fichas na segunda. O resultado nós sabemos.

“Às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência”, disse Jarbas Passarinho, ministro do Trabalho, a Costa e Silva em defesa do AI-5 na fatídica reunião em que foi aprovado. Dez anos depois, às vésperas de sua revogação, a maioria de seus signatários não escondia a insatisfação com o monstro que haviam criado. “Sinto-me revoltado e indignado quando vejo signatários do AI-5 posando hoje de madalenas arrependidas”, afirmou o mesmo Jarbas Passarinho.

Após a tragédia, a farsa. Sempre.

Gustavo Freire Barbosa é advogado

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