Justiça

Em plena pandemia, Justiça de SP mantém preso homem que furtou barbeador

Decisões têm ignorado a recomendação do CNJ, que prevê a liberdade de presos em grupo de risco e crimes mais leves

Foto: Secom/Polícia Civil
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Em plena pandemia do coronavírus, que até o momento já matou mais de 11 mil pessoas no Brasil, colocando o país na 6ª posição de mais atingido pela doença no mundo, o Tribunal de Justiça de São Paulo mantém preso um homem acusado de furtar uma cartela com barbeadores no valor de 22,56 reais.

O caso aconteceu no dia 3 de abril, na cidade de Santa Barbara d’Oeste, interior de São Paulo. Marciel Fernandes Leite, de 41 anos, entrou em uma farmácia e furtou uma cartela com quatro barbeadores. Ao deixar o local, os seguranças perceberam o ato e o abordaram, pegando de volta os objetos.

Após ser preso em flagrante, a Defensoria Pública do Estado imediatamente entrou com um pedido de liberdade de Marciel, alegando o princípio da insignificância do objeto roubado, além do fato de Marciel ser réu primário (ele responde por um furto anterior, mas o processo ainda não foi concluído).

A Defensoria citou também a resolução divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça sobre prisões em meio à pandemia do coronavírus. Essa resolução foi apresentada pelo órgão no dia 17 de março e sugere, entre outras coisas, a reavaliação de prisões provisórias e preventivas, que resultem de crimes menos graves, além de indicar que novas ordens de prisão devem respeitar a ‘máxima excepcionalidade’.

Mas nenhum desses argumentos foram suficientes para convencer a juíza Camilla Marcela Ferrari Arcaro de libertar Marciel. A magistrada manteve a prisão e alegou que, apesar do pequeno valor do objeto apreendido, a conduta do acusado nem de longe pode ser considerada irrelevante. “É evidente que, nestas circunstâncias, se colocado em liberdade, voltará a delinquir, devendo permanecer encarcerado para evitar que volte a atentar contra o patrimônio dos cidadãos de bem”, disse Camila.

“Neste momento de pandemia, não pode o Poder Judiciário se furtar à decretação da prisão daqueles que optaram pela prática de delitos, sob pena de transformar a hipótese de contaminação em verdadeira carta branca ao crime, com os criminosos agindo na certeza da impunidade, em prejuízo da população que já está abalada pelo pânico social instalado”, argumentou.

TJ-SP manteve a condenação

Após a decisão de primeira instância, a Defensoria Pública recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo utilizando os mesmos argumentos apresentados no primeiro pedido. E mais uma vez os motivos expostos não foram suficientes para colocar Marciel em liberdade.

No dia 8 de abril, os desembargadores Ivana David e Diniz Fernando Ferreira da Cruz mantiveram a prisão do acusado alegando que um furto, mesmo que de um barbeador, “traz grande intranquilidade à população, colocando em risco a ordem pública”.

Quanto à resolução apresentada pelo CNJ, Diniz levou em consideração o fato de Marciel não fazer parte do grupo de risco, conclusão essa que foi argumentada sem ser apresentado um exame médico do acusado.

Os dois desembargadores argumentaram, diferentemente da Defensoria Pública, que Marciel não é réu primário.

Outros casos que vão contra a resolução do CNJ

O caso de Marciel não é o único. Em recentes decisões, desembargadores do TJSP não têm seguido a resolução do CNJ e pessoas que cometeram crimes que são considerados insignificantes para o direito continuam presas. Como o caso de Erivaldo Pereira de Souza Filho, que teve a prisão mantida pelo tribunal, no último dia 2, por furtar xampu de um supermercado no valor de 54 reais.

Valetim Romero e Janderson Silva dos Santos também tiveram suas prisões mantidas, no dia 22 de abril, por furto de xampu. Erick Daniel Bernardo Soares se encontra preso por roubar refrigerantes e sucos no valor de 60 e teve a pena confirmada pelo tribunal no dia 11 de abril.

Já Paulo Ricardo Ramos da Silva teve sua prisão mantida no último dia 6 por tentativa de furto de uma caixa de som e Samuel Alves Campos no dia 17 de abril pelo furto de dois desodorantes no valor de 20 reais.

O sistema prisional na pandemia do coronavírus

Essas decisões aconteceram no estado que mais tem pessoas presas no Brasil. Segundo o Infopen, São Paulo possui uma população carcerária estimada em 233 mil pessoas e uma taxa de 181% de déficit de vagas. Ou seja, as cadeias paulistanas estão superlotadas.

Além disso, nenhuma unidade possui equipe médica comple, como determina o Ministério da Saúde. É o que conta o defensor público do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do estado de São Paulo, Leonardo Biagioni de Lima.

“Esse cenário impede uma atenção mínima à saúde dessa população. Há um agravo da situação nessa pandemia, principalmente pelo espaço de superlotação insalubre. Faltam itens de higiene e até água. Presos entrevistados pela defensoria afirmaram não ter sabonete na quantidade mínima necessária. Então se nem isso tem, como vão realizar a higiene necessária para evitar novos contágios”, questiona o defensor.

Leonardo conta que, para prevenir o agravo desse cenário, foram apresentadas por diversos órgãos medidas coletivas para tentar um desencarceramento da população, principalmente os mais vulneráveis e os que não cometeram crimes graves. No entanto, na maioria dos casos, esses pedidos estão sendo negados em todas as instâncias.  “Apenas 10% da população carcerária que faz parte do grupo de risco foi libertada. O cenário é bastante trágico dentro das unidades prisionais.”, conta ele. Em São Paulo, mais de 25 mil presos são idosos, com comorbidades como asma, câncer e tuberculose.

Procurada, a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo (SAP) informou que, até o momento, nove presos no estado estão infectados com a covid-19 e sete mortes já foram confirmadas. Já entre os agentes penitenciários, 16 estão com a enfermidade e seis morreram.

A falta de testes dentro do cárcere

Os números apresentados pela SAP podem ser bem maiores. É o que diz a advogada e pesquisadora do Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC), Marcela Amaral. “Até maio de 2020, apenas 0,09% das pessoas em situação de prisão foram testadas para o vírus por conta da ausência de teste específico”, conta ela, que se baseou em números divulgados pelo Depen (Departamento Penitenciário Nacional).

A SAP informou que avalia permanente o direcionamento de ações para o enfrentamento do problema, intensificando as medidas de higiene e distanciamento preconizados pelos órgãos de saúde. Além disso, atividades coletivas e visitas familiares foram suspensas, podendo o preso se comunicar com suas famílias através de cartas.

Outro ponto levantado por Marcela é o fato de a tuberculose ser um problema comum dentro das prisões brasileiras, mostrando como o ambiente é propício para a proliferação de um vírus. “Cabe ressaltar que o ambiente carcerário é inóspito e doenças são muito mais rapidamente disseminadas. A tuberculose, por exemplo, tem aumentada em 30 vezes sua chance de contágio”, diz.

“Neste cenário, tornam-se ainda mais recrudescidas e potencialmente fatais. Reitera-se a necessidade de medidas alternativas à prisão a todas aquelas que se encontrarem no rol de possibilidades”, defende a pesquisadora.

Procurado, o TJSP afirmou que as decretações e reavaliações de prisões são feitas por cada Juiz ou Desembargador do Tribunal de Justiça conforme sua independência e livre convencimento.

“No tocante aos estabelecimentos prisionais e às condições sanitárias ali existentes, trata-se de matéria diretamente relacionada à Secretaria da Administração Penitenciária, cabendo à Corregedoria Geral da Justiça e a todos os Juízes Corregedores do Estado acompanhar e fiscalizar essa atuação na prevenção e combate ao Coronavírus nas Unidades Prisionais. Importante consignar que esse acompanhamento é feito diariamente, através de contato com a SAP e, também, diretamente com os Diretores das Unidades Prisionais, que informam sobre as condições de cada presídio e os números relativos ao Coronavírus”, diz a nota enviada à reportagem.

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