Justiça

Em meio à comoção mundial por Bruno e Dom, indígenas de Rondônia cobram respostas por outra morte impune

Ari Uru-Eu-Wau-Wau, de 33 anos, foi encontrado com sinais de espancamento próximo a uma das entradas da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, a maior do estado

Ari na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, ameçada pela grilagem e pelo desmatamento. (Foto: Gabriel Uchida/Kanindé)
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O Brasil e o mundo se chocaram com as mortes cruéis e covardes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, na região do Vale do Javari, no oeste do Estado do Amazonas. 

Após onze dias de buscas, iniciadas por indígenas locais, os corpos foram achados na última quarta-feira 15. Jornalistas e lideranças indígenas de outras partes do país, também se deslocaram até o Javari para auxiliar as polícias a vasculharem a região, entrecortada por rios, florestas e pântanos.

A confirmação das mortes apenas encerra mais uma trágica história dos que lutam para preservar a Amazônia. O valor dessa porção verde do planeta é incalculável, e é no Brasil que se encontra a maior parte dela. Apesar de tamanha importância, porém, a maior floresta do mundo virou terra de ninguém. 

Garimpo ilegal, caça e pesca ilegais, grilagem de terras, madeireiros ilegais, tráfico de drogas, igrejas neopentecostais tentando cooptar tribos inteiras, invasão de terras, prostituição e enfraquecimento dos órgãos de proteção tornaram essa área uma das mais atacadas e menos protegidas pelo Estado. 

Esta não é a realidade apenas do Amazonas, mas sim de toda a região. Em Rondônia, estado cujo nome homenageia o Marechal Cândido Rondon, um dos grandes defensores da causa indígena, um crime similar ao de Bruno e Dom completa dois anos impune.

O corpo de Ari Uru-Eu-Wau-Wau, 33 anos, foi encontrado com sinais de espancamento próximo a uma das entradas da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, a maior do estado. Ari fazia parte de uma equipe, composta majoritariamente por indígenas, que monitorava a ação de invasores e protegia os limites da reserva. Lideranças locais acreditam que essa foi a motivação do assassinato.

A violência e as ameaças só aumentaram desde então, conta Ivaneide Bandeira Cardozo, a Neidinha, indigenista que desde 1992 lidera a Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé. No último dia 12 de junho, conta ela, um grupo de grileiros invadiu a terra indígena dos Uru-Eu-Wau-Wau. “Entraram na casa de uma família indígena Itú-Eu-Wau e queimaram os pertences de todos. A casa só não queimou porque os demais indígenas foram apagar o fogo.”

Neidinha contou que os indígenas organizam grupos de proteção, chamado guardiões, que monitoram os territórios pertencentes às tribos. A intenção de grupos como o que Ari liderava, explica ela, é contribuir com o Estado na segurança contra os invasores. O poder público, porém, não tem colaborado.

Os indígenas organizam grupos de proteção, chamado guardiões, que monitoram os territórios pertencentes às tribos (Foto: Rondoniaaovivo)

“Esses grupos precisam do apoio dos órgãos de proteção, mas o que vemos hoje é que os órgãos estão enfraquecidos, comandados por quem não tem conhecimento e nem experiência na defesa dos direitos humanos e meio ambiente. Tudo nos parece proposital para que não funcionem”, avalia.

A ativista indígena Maria Leonice Tupari também faz coro às críticas de Neidinha. Essa situação, lamenta, encoraja a violência contra os indígenas em Rondônia e no restante do país. “A Funai diz está fiscalizando, mas se fiscaliza mesmo, porque tem aumentado as invasões?”

Outra liderança indígena de Rondônia que está indignada com a forma como estão sendo tratados é Fabrícia Sabanê, coordenadora da Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia, a Agir.

“Houve um tempo em que a Funai foi mais atuante na questão de proteção territorial e seus servidores eram mais engajados”, lembra. Hoje, segundo ela, muitos cargos na Funai têm sido ocupados por pessoas que não conhecem a realidade indígena. “Tudo se tornou politicagem e os mais afetados são os indígenas.” O atual governo federal, mais uma vez, nada tem feito para ajudar. “Muito pelo contrário, tem incentivado ainda mais as invasões em nossos territórios, a extração e a mineração ilegais.”

Fabrícia acredita que a posição do Executivo é a raiz da maioria dos atritos em terras indígenas com grupos criminosos e invasores. “Por isso, os crescentes conflitos que acabam tirando a vida dos líderes e também daqueles que nos apoiam nessa luta, como foi o caso de Bruno e Dom, entre tantos outros que já perderam a vida por estar do nosso lado nos ajudando nas denúncias”.

Na primeira coletiva à imprensa sobre a morte de Bruno Pereira e Dom Phillips, em Manaus, ainda na noite da quarta, os indígenas foram, simplesmente, esquecidos. Apenas faziam parte da mesa de autoridades entrevistas representantes da Justiça e das forças de segurança.

A ausência só foi notada após o questionamento de uma jornalista estrangeira. A resposta do delegado da Polícia Federal foi ainda mais vergonhosa: ele admitiu que foi um ‘equívoco’ os indígenas não estarem participando da conversa com os veículos de comunicação.

Aquela cena, aparentemente banal, é mais um retrato de como o Brasil sempre tratou os povos indígenas: como cidadãos de segunda classe. “O coração pesa por dizer isso, mas o preconceito é gigantesco e não se vê qualquer política séria para ao menos tentar amenizar isso”, lamenta o procurador da República Reginaldo Trindade, um dos grandes defensores da causa indígena em Roraima.

Nesses 522 anos de Brasil, avalia, a realidade desses grupos pouco mudou. Ainda é marcada por espoliação, descaso, exploração, preconceito e tudo o que cabe em uma relação entre dominantes e dominados. “O preconceito é, não raro, baseado em ignorância extrema acerca da vida e dos costumes dos povos indígenas, bem como sobre a forma como a Constituição e as leis do país tratam do tema.” 

 

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