Justiça

Disputa entre fazendeiros e indígenas no sul da Bahia une grilagem, especulação e veto à praia

Magnata do cacau e multinacional italiana aparecem em registros de fazendas sobrepostas e na liderança de associações de ‘preservação’ usadas para travar processo de demarcação

Disputa entre fazendeiros e indígenas no sul da Bahia une grilagem, especulação e veto à praia
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Próxima a praias descritas por publicações de turismo como “paradisíacas”, a região onde fica a Terra Indígena Comexatibá, no município de Prado, extremo sul da Bahia, está há dez anos com seu processo de demarcação paralisado. Nesse vácuo jurídico, fazendeiros e empresários consolidaram ocupações, registraram propriedades sobrepostas e impulsionaram a especulação imobiliária em uma região cobiçada por pousadas de luxo e condomínios fechados. O povo Pataxó denuncia não apenas grilagem e tentativas de privatização das praias, mas também uma escalada de violência, marcada por bloqueios armados e assassinatos de jovens indígenas.

O território foi delimitado pela FUNAI em 2015, quando um relatório circunstanciado reconheceu a área como originária dos Pataxó. Desde então, 151 contestações apresentadas por fazendeiros e associações ligadas a empresários travaram a homologação. Enquanto o processo se arrasta, os indígenas passaram a realizar as chamadas “retomadas” como forma de resistência. Há pouco mais de um mês, ocuparam as fazendas Imbassuaba e Portal da Magia, ambas listadas entre as 78 propriedades consideradas irregulares. A ofensiva foi motivada pelo fechamento do acesso tradicional à praia de Imbassuaba, bloqueada por dois meses com porteiras e seguranças privados, apesar de a legislação brasileira proibir qualquer obstáculo às praias.

Entre os nomes que surgem ligados às fazendas está o do empresário do cacau Ernesto Ary Neugebauer, dono da Danke e sócio da Gencau. Registros no Sistema Nacional de Cadastro Rural o apontam como proprietário da Imbassuaba e da Horto do Sol, ambas de frente para o mar. Indígenas relatam que ele bloqueou acessos a praias vizinhas e controla pelo menos quatro propriedades sobrepostas ao território. Uma de suas empresas, a Calambrião Participações Ltda, criada em 2017 em sociedade com a filha, tem entre as atividades declaradas o loteamento de imóveis e a incorporação de empreendimentos imobiliários.

Outro personagem central é o empresário Igor Guerra Ulhôa, sócio da Construtora Horto Ltda. Ele anexou a um pedido de reintegração de posse um contrato de compra e venda da Fazenda Imbassuaba no valor de 8 milhões de reais, firmado em 2025, com previsão de outra negociação futura de 6 milhões de reais, condicionada à “regularização” da documentação. Ulhôa foi apontado pelos indígenas como responsável pelo bloqueio da praia com seguranças armados. Procurado pela reportagem, negou, afirmando ter buscado apenas “privacidade” e informando que negocia com a associação de pescadores do povoado vizinho a melhoria de outra via de acesso. Também garantiu não ter interesse em loteamentos, embora seja ligado a diversas incorporadoras e holdings em Minas Gerais e na Bahia. “Comprei para desfrutar com minha família.”

Já a fazenda Portal da Magia aparece vinculada ao italiano Andrea Borghesi e à multinacional Maccaferri. Um de seus objetivos declarados, segundo relatórios internos e postagens do próprio empresário em redes sociais, seria promover a “regularização fundiária” da área, passo visto por lideranças locais como preparação para futuros loteamentos de condomínios fechados. Parte da propriedade chegou a ser embargada pelo IBAMA por desmatamento em área de preservação permanente. Borghesi também foi fundador da Associação para Preservação do Pólo do Descobrimento (APPD), criada em parceria com Neugebauer e o também italiano Stefano Orsi, apontada por indígenas como fachada usada para contestar a demarcação e tentar assumir a gestão do Parque Nacional do Descobrimento, atualmente sob gestão do ICMBio e que tem 19,62% de sobreposição ao território.

Segundo o indigenista Juliano Fonseca*, que acompanha os Pataxó na região, os empresários também tiveram papel decisivo na criação do parque, instalado em 1999 em parte da terra indígena. “Eles fizeram parte de uma comissão e conseguiram convencer o governo a comprar a área antes ocupada pela Braslanda, empresa que explorava madeira na região nos anos 1980, para a construção do parque”, afirma. “Como já tinham invadido as áreas com sobreposições, criaram outras no intuito de trazer turismo e estradas, numa estratégia de tentar descaracterizar as terras indígenas.”

Contrato de Compra e venda anexado à reintegração de posse solicitada pela construtora Horto Ltda.

Fonseca acrescenta que os mesmos grupos foram responsáveis diretos e indiretos por diversos pedidos de contestações ao processo de demarcação. “Eles fizeram tanto contestações individuais como em nome da associação que têm juntos. Ainda chegaram a contratar advogados para registrar contestações em nome dos ‘Guedes’ — povoado local, fruto da miscigenação entre indígenas e mascates portugueses, que vivem tradicionalmente no território – Mas, com o tempo, parte dos Guedes passou a se reconhecer como indígena e retirou quatro dos 151 pedidos de contestação existentes”, relata.

A reportagem buscou ouvir os empresários citados. Ernesto Ary Neugebauer não respondeu às tentativas de contato até a publicação. A multinacional italiana Maccaferri também foi procurada, mas não retornou. Andrea Borghesi e Stefano Orsi, sócios da Portal da Magia Empreendimentos e da APPD, não foram localizados. O texto será atualizado caso haja manifestação.

A trajetória de Borghesi na região também se cruza com a da família Lessa, envolvida em antigas denúncias por comercializar ilegalmente terras do INCRA. Um morador relatou que Borghesi chegou acompanhado de um grupo do Rio de Janeiro e, após a morte de uma dessas pessoas, as terras foram divididas. As terras teriam sido compradas de José Carlos Lessa, já falecido, e pai do advogado Lucas Lessa e de João Américo de Moraes Lessa, que anunciam terrenos da área em redes sociais e no YouTube. Em agosto, a família ingressou com um interdito proibitório contra lideranças Pataxó para impedir novas retomadas na chamada Fazenda Paraíso, igualmente sobreposta à TI Comexatibá.

Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, a atuação desses grupos empresariais caracteriza mais do que simples irregularidades. “Se uma associação é criada para dar aparência de legalidade a grilagem e loteamentos, ela pode ser enquadrada como associação criminosa”, afirma Assaf Silva Gonçalves, conselheiro de ética da OAB-DF. Ele lembra que a Constituição é explícita: negócios em terras indígenas, mesmo não homologadas, são nulos. Contratos de compra e venda, registros de cartório e anúncios em sites de imóveis não têm qualquer validade jurídica.

A resposta do Estado, contudo, tem sido insuficiente. O Incra reconhece que o assentamento PA Cumuruxatiba já foi palco de vendas ilegais de lotes, mas afirma não autorizar transações e atribui a resolução de conflitos à Justiça. A FUNAI informa que já analisou todas as 151 contestações ao relatório de delimitação e que o processo está na Procuradoria aguardando parecer jurídico para, só então, ser encaminhado ao Ministério da Justiça.

Enquanto isso, os Pataxó seguem como alvos. Entre 4 e 8 de agosto, indígenas relataram disparos de armas de fogo contra aldeias e contra a retomada de Imbassuaba. Nos últimos anos, três jovens Pataxó — Gustavo, de 14 anos, Nawir, de 16, e Samuel, de 21 — foram assassinados em conflitos com fazendeiros. Nenhum empresário ou posseiro foi morto. “Se a Força Nacional sair daqui, os pistoleiros voltam a atacar”, disse Diego* Pataxó. Desde abril, a polícia integrada mantém efetivos na região para conter confrontos.

*Por questões de seguranças, os nomes de indígenas e moradores foram alterados.

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