Comigo, restou um crer nas múltiplas possibilidades dos mistérios: encantados, orixás, entidades, santos ou apenas a fagulha que deve estar em mim, átomo presente em todo o Universo, ao que muitos consideram “Deus”, Olodumare, Tupã, e que, quiçá, nada mais seja do que a inteligência em toda sua potência e, ao mesmo tempo, a simplicidade em toda sua benevolência: um/a deus/a menos universal e mais particular, falho/a e humano/a, que compreenda os particularismos religiosos de cada um/a, inclusive daqueles em quem nada creem e seja capaz de brincar e dançar com(o) as/os demais deusas/es.
E por que as religiões afro-indígenas brasileiras são intoleradas pelos que professam o racismo religioso? Há várias respostas, mas tratarei da perspectiva que vejo no Tambor de Mina, religião surgida no Maranhão, fundada por Ná Agotimé, uma rainha africana, escravizada, que teria fundado a Casas das Minas[i]. Para Mundicarmo Ferretti, no Tambor de Mina são cultuados voduns e orixás, gentis e caboclos. Contudo, há uma expressão que chama bastante atenção na Mina: a encantaria.
O que mais incomoda os fundamentalistas, ferindo de morte o princípio constitucional da liberdade religiosa (art. 5º, VI), deve ser o encantamento que as religiões afro-indígenas transmitem. Não se trata só de religação, mas “encantar-se” com a ancestralidade e consequentemente com suas próprias vidas terrenas, passadas e presentes.
Conheci o Tambor de Mina através de Pai Itaparandi, da Casa Pedra de Encantaria (Ilê Axé Otá Olé). Percebi que não se trata só de religião, porém de filosofia, sociabilidade, comunidade aquilombada, e cultura que transpira a ancestralidade mediada pelos fluxos da diáspora. Max Weber dizia que o mundo estava em desencanto, enquanto Nietzsche só acreditaria em um Deus que pudesse dançar.
Na Mina, os voduns e encantados/as descem no terreiro de chão batido para juntar-se aos seus. Humanos e divindades reverenciam a vida e a sua capacidade transformadora através da dança que promove encantamento. Esse direito tão singelo de “dançar” e celebrar o poder da vida, de encantar-se com as divindades é intolerado pelos fundamentalistas, os quais não suportam a inquestionabilidade de suas verdades terrenas e fragilidades teológicas.
Nesse sentido, uma religião que lida com a encantaria, celebra os sons dos tambores, acolhe os coloridos do bumba-meu-boi e regozija a corporalidade do tambor-de-crioula, torna-se ameaça a dogmas sedimentados e verdades únicas e enclausuradoras dos homens[ii]. Jesus, demasiadamente humano, disse que se conhecêssemos a verdade esta nos libertaria. Já Padre Antônio Vieira dizia “Resolvi-lhe a vous dizer uma só verdade: mas que verdade será esta? Não gastemos tempo: a verdade que vos digo é que no Maranhão não há verdade”.
Vieira devia saber que a verdade é facilmente manipulável pelos homens, tanto que formulou toda uma justificação teológica, envolvendo até a Imaculada Santa Maria, para justificar a escravidão. Quem sabe a verdade que liberta seja descobrir que no campo sagrado há mais incertezas do que verdades: apenas um princípio leva à verdade que pode conectar todas/es/os, o amor um/a ao outro/a, assim como Ele nos amou e tolerou.
Se há amor, há encantamento e ambos dissipam as intolerâncias alicerçadas nos pactos de opressivos de masculinidade, branquitude, classicismo etc. Desconfio que o maior medo dos intolerantes é, em mundo desencantado pelo consumo e acumulação, defrontar-se com religiões que vivenciam o encantamento dos indivíduos consigo mesmos, a ancestralidade, a natureza, a comunidade etc., pois, após o catolicismo ter avalizado a colonização, como explicou Weber, a ética protestante foi fundamental para a ascensão do capitalismo.
Dessa forma, encantar-se constitui direito daqueles que acreditam que podem se conectar com o transcendental e divindades aqui mesmo. Ao Estado, por sua vez, é essencial prevenir e coibir quaisquer intolerâncias, sabidamente racializadas, pois o próprio Jesus, em seu encantamento com todes e afirmando o princípio jurídico da laicidade, vigente desde o Decreto 119-A/1890 e Constituição de 1891, já dizia que os assuntos divinos não devem se confundir com os estatais.
Pelo dever de menos intolerância e direito de mais encantamento!
[i] VERGER, Pierre. Uma rainha africana mãe de santo em São Luís. Revista USP, São Paulo, p. 152-158, jun./ago. 1990.
[ii] Uso “homens” para evidenciar o caráter patriarcal e masculino da questão.
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