Justiça

assine e leia

Direito de resistência

O filme Marighella, de Wagner Moura, baseado na biografia escrita por Mário Magalhães, trouxe para as telas dos cinemas um recorte da vida do guerrilheiro que comandou o maior grupo armado de oposição à ditadura, a Ação Libertadora Nacional. Desde o lançamento, muito esforço tem […]

Direito de resistência
Direito de resistência
Foto: Divulgação
Apoie Siga-nos no

O filme Marighella, de Wagner Moura, baseado na biografia escrita por Mário Magalhães, trouxe para as telas dos cinemas um recorte da vida do guerrilheiro que comandou o maior grupo armado de oposição à ditadura, a Ação Libertadora Nacional. Desde o lançamento, muito esforço tem sido feito por setores da direita para deslegitimar o caráter heroico da conduta do combatente baiano. Isso porque, na visão dos críticos, Marighella, identificado com a ideologia leninista-marxista, pretendia, na realidade, substituir o regime militar por uma ditadura comunista.

Ainda que esse debate sobre as convicções ideológicas de Marighella seja possível sob alguma perspectiva sociológica, a questão de sua atuação contra a ditadura é muito mais complexa do que um juízo reduzido como esse. O debate acerca da figura de Marighella, nesse contexto específico, deve ser feito sob a perspectiva do constitucionalismo e dos direitos, lembrando que ele sacrificou a vida para exercer um direito humano absolutamente relevante para a democracia, que é o direito de resistência.

Qualquer ditadura, de esquerda ou de direita, enseja e legitima ações de resistência até mesmo não pacíficas, o que independe das crenças políticas e/ou ideológicas de quem resiste. O constitucionalismo fundamenta-se na ideia de que o poder político deve estar subordinado aos direitos, e não o contrário. Sob essa perspectiva, qualquer governo cujo poder político se coloque acima da Constituição e dos direitos, pretendendo decidir quanto à sua aplicação ou não, é um governo autoritário.

Fazendo uma breve contextualização histórica, o conceito do direito de resistência, que esteve presente em todo o percurso da história humana, remonta ao surgimento do liberalismo político e à influência que este sofreu do protestantismo, especialmente dos huguenotes – calvinistas franceses que sofreram forte perseguição durante as chamadas Guerras Religiosas do século XVI. Esses protestantes, também chamados de monarcômacos, combateram o absolutismo monárquico e desenvolveram a teoria de que a tirania ocorria quando o soberano degenerava em tirano pela não observação contumaz dos direitos naturais, ou seja, o conjunto de direitos a que todo homem tem direito naturalmente, pelo fato de ser filho de Deus e, portanto, dotado de uma dignidade humana. Essa dignidade originaria os direitos naturais de liberdade, de livre expressão, de livre consciência, de propriedade, além da garantia considerada a espinha dorsal desse conjunto de direitos – o de resistir à tirania.

John Locke desenvolveu melhor a ideia de direito de resistência. Partindo do mesmo conceito dos huguenotes de que tirano é aquele que não observa os direitos naturais, ele formula que o direito de reação deve ser proporcional à intensidade da tirania, o que pode consistir em desobediência civil pacífica ou até mesmo em reações violentas, como o tiranicídio – a eliminação do tirano.

Os iluministas sempre refletiram e acalentaram a ideia de direito de resistência. A Revolução Francesa e as demais revoluções burguesas – a americana e a inglesa – se fundamentaram nesse direito para poder instaurar novas formas liberais. Entende-se que esse é um direito inerente ao que hoje chamamos de direitos humanos.

Acrescidos esses aspectos do surgimento do direito de resistência como um direito estruturante, pode-se afirmar que é um equívoco julgar a figura histórica de Marighella sob o ponto de vista de suas condições subjetivas. O direito humano à resistência legitima-se não pelas crenças políticas subjetivas do resistente, mas sim pela tirania do Estado contra o povo. Uma ditadura que ameaçou, matou e torturou milhares de cidadãos tornava legítima qualquer forma de resistência a ela.

Vale observar que a democracia universal contou com a intensa e relevantíssima participação de marxistas nas lutas pela sua consolidação. As democracias construídas pelas revoluções burguesas foram democracias censitárias, em que a cidadania formal e material era apenas reconhecida aos homens brancos possuidores de renda e propriedades. Foi a partir das conquistas de movimentos sociais – dos trabalhadores no fim do século XIX e começo do século XX, do movimento das mulheres sufragistas no começo do século XX e dos movimentos antirracistas – que mudaram de caráter, adquirindo para esses grupos o direito de votar, entre outros.

Não se pode confundir os governos do socialismo real do século XX e seus desvios autoritários com a ação política concreta de comunistas no interior das democracias ocidentais. Marighella sacrificou a vida para possibilitar o exercício pleno do direito de resistência. Nesse aspecto, sua conduta foi, sim, heroica, e querer reduzir o papel histórico e a valentia desse personagem por conta de sua ideologia marxista é um grande erro.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1185 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE NOVEMBRO DE 2021.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo