Justiça

Depois do terraplanismo, “passapanismo” vira tendência com Vaza Jato

A dúvida é se passapanistas terão fôlego para continuar depois que mais vazamentos revelarem o que muita gente já sabia

Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF
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“O desprezo por evidências científicas é um item que não costuma faltar na cesta básica da direita populista”. Assim começa a matéria da Folha de S. Paulo assinada por Anna Virgínia Balloussier sobre o espaço que o terraplanismo vem ganhando nos últimos tempos, com direito até a documentário da Netflix.

Não assusta que a teoria de que a Terra é chata venha angariando cada vez mais atenções na esteira do crescimento de forças políticas representadas por nomes como Trump, Bolsonaro, Salvini (Itália), Orbán (Hungria), Erdogan (Turquia) e Kaczyński (Polônia). Já tivemos a oportunidade de apontar como um dos adversários do bolsonarismo é exatamente qualquer coisa que se aproxime de algum avanço civilizatório.

Os surtos feudais de Damares, Ernesto Araújo e do próprio Jair, que junto com o ministro Osmar Terra insiste em negar resultados de pesquisas que contrariam as vozes em sua cabeça, não deveriam ser surpresa.

Não por menos, o ataque virulento às universidades pelo ministro da educação ocorre num contexto de negação a obviedades científicas em prol de uma agenda que se ampara essencialmente em terraplanismos – aqui visto como qualidade, categoria ou sinônimo dessa direita bolsonarista desapegada de fatos concretos – que ganham forma em conceitos como “globalismo”, “climatismo” e “ideologia de gênero”. Mark Sargent, o papa das teorias terraplanistas, assume ele próprio que a postura de Trump quanto a temas dessa natureza foi fundamental para que seu rebanho crescesse.

Na onda do terraplanismo, cresce também o “passapanismo”. Antes voltado a passar o pano nas fissuras do bolsonarismo decorrentes do envolvimento do clã com práticas improbas, os passapanistas agora se detêm em sair em defesa da dupla de milicianos judiciais Sérgio Moro e Deltan Dallagnol.

Fernando Frazão/Agência Brasil

Em março de 2005, numa reportagem que publicou no jornal O Globo, a jornalista Vera Araújo usou o termo “milícia” para classificar onze grupos de paramilitares que controlavam quarenta favelas na capital carioca. 

Segundo o Houaiss, milícia é o “grupo armado de pessoas, geralmente com formação militar, paramilitar ou policial, que atua à margem da lei em algumas comunidades carentes, pretensamente para combater o crime”.

A similaridade com o modus operandi da dupla é auto-explicável.

Além dos milicianos, o séquito de bolsonaristas vem, de domingo para cá, passando o pano também para os protagonistas das cabeludas conversas divulgadas pelo The Intercept. Os argumentos para safar as peles de Moro e Dallagnol são de um nível de acrobacia capaz de causar inveja mesmo àqueles que insistem em dizer que o ex-juiz foi alçado ao posto de Ministro da Justiça por ter combatido a corrupção.

O principal argumento, além da retórica miliciana de que os fins justificam os meios, é talvez o de que a divulgação das conversas firmadas pelo juiz e pelo procurador foram ilegais e que sua revelação não alteraria a condenação de Lula.

Há ainda o vitimismo alardeado por Dallagnol em suas redes, as tentativas de descredibilizar Glenn Greenwald, idealizador do site, e a indolente interpretação de que os diálogos dizem respeito a conversas de comadre, desimportantes e naturais no cotidiano da atividade judiciária.

Primeiro, nossa Constituição garante o sigilo da fonte para o exercício da atividade jornalística (artigo 5º, XIV). Logo, o The Intercept não tem nenhuma obrigação de revelá-la, pouco interessando se a coleta das informações foi legal ou ilegal.

A insistência nesse ponto revela muito mais a afobação em tirar os holofotes do seu conteúdo, intenção que fica nítida também nos ataques à pessoa de Glenn Greenwald. “Nós não discutimos para provar que o adversário está errado. Discutimos para destruí-lo socialmente, psicologicamente, economicamente”, orienta Olavo de Carvalho em suas aulas. Até a deportação de Greenwald está sendo pedida pelo bolsonarismo lavajatista.

Segundo, em resposta à indagação de um jornalista no Twitter, o Telegram afirmou que não há evidências da ação de um hacker nesse caso.

Isso quer dizer que não houve invasão? Óbvio que não. Serve, porém, para demonstrar o desespero das hordas bolsonaristas em ignorar o fato de que seu mais proeminente ministro agiu como um gangster ao fazer uso de uma função pública para chegar a objetivos ilícitos e antirrepublicanos – bem ao estilo dos milicianos homenageados na ALRJ por Flávio Bolsonaro.

Quanto ao esperneio de Dallagnol, nada mais natural de quem se encontra acossado por duas reclamações disciplinares no Conselho Nacional do Ministério Público e por uma sugestão de afastamento de suas funções por parte da OAB. Uma das coisas reveladas pelo The Intercept é a obsessão do procurador com sua imagem perante a opinião pública. Chorar nas redes e plantar vitimismos é o que lhe resta para preservá-la.

Ainda, a tese de que os registros captados pelo site se tratam de conversas triviais, equiparando-os a pedidos para segurar o elevador ou de que horas são, faz tanto sentido quanto a Terra ter o formato de uma pizza.

É essa, inclusive, a versão do ex-juiz Sérgio Moro, aspirante ao posto de sacerdote-mor do terraplanismo. É a tese também do procurador Guilherme Schelb em artigo publicado no site Antagonista. Ele, que chegou a ser cotado para o MEC antes de Veléz Rodríguez, deve, dentre outras coisas, achar normal um juiz dar dicas e oferecer uma testemunha à acusação ao mesmo tem em que discute os meios de fazê-la depor no processo.

A blindagem quanto à condenação de Lula vai na conta da já conhecida despreocupação em ler o conteúdo da reportagem: Dallagnol mostrou pouca convicção com as provas antes, durante e depois de ter denunciado o ex-presidente no caso do triplex. Na ocasião, Reinaldo Azevedo, Lênio Streck e boa parte da comunidade jurídica desancavam a ação do MPF contra Lula.

Diante da ansiedade de um Dallagnol acuado e inseguro, Moro o acalentou: tachou de desproporcionais as críticas que lhe estavam sendo feitas e, como bom amigo, o aconselhou a seguir firme.

Imaginem só um juiz, no início de uma ação judicial, acalmar as inquietudes de uma das partes – e logo da parte que acusa, cuja liberdade não se encontra em risco – quanto ao resultado do processo, dando-lhe segurança para “seguir firme”.

A famosa decisão do ex-juiz dizendo que “este juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobras foram usados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente”, contrariando a própria denúncia, é apenas uma das provas de que tanto ele quando Dallagnol podem, em tempos de desamor, desavenças familiares e desconfianças generalizadas, ostentar uma invejável amizade capaz de derrubar quaisquer barreiras. A começar pelas impostas pela Constituição.

Em entrevista na última segunda-feira, o editor-executivo do The Intercept Brasil revelou que o grupo analisou apenas 1% do material que tem em mãos. A fartura de informações é apontada também na introdução editorial da reportagem (a mesma que não foi lida por Dallagnol e Moro, é sempre bom repetir). A dúvida agora é apenas se haverá pano suficiente para passar nas futuras diabruras da dupla dinâmica do lavajatismo.

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