Justiça

“Decisão sobre 2ª instância não favorece impunidade”, diz desembargadora

Para Kenarik Boujikian, libertar presos após segunda instância não aumenta insegurança, mas recoloca a Justiça nos trilhos constitucionais

“Decisão sobre 2ª instância não favorece impunidade”, diz desembargadora
“Decisão sobre 2ª instância não favorece impunidade”, diz desembargadora
Sessão do Supremo Tribunal Federal, durante julgamento sobre prisão após 2ª instância. (Foto: Felipe Sampaio/SCO/STF)
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O Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu, na noite desta quinta-feira 7,  a execução da pena após condenação em segunda instância. A decisão favoreceu o ex-presidente Lula, que deixou a prisão em Curitiba na sexta 8, e outros 18 nomes presos pela Operação Lava Jato, mas não só.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça, cerca de 4.900 réus tiveram penas executadas após condenação em segunda instância depois que o STF permitiu essa medida em 2016. Esses presos podem conseguir liberdade, mas para isso precisam entrar com pedido de habeas corpus na Justiça. Se aprovado, aguardam o julgamento em liberdade.

Após a decisão do STF, muitas pessoas começaram a questionar nas redes sociais se isso pode prejudicar a segurança no país. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente da República, postou:

Não é bem por aí. A desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e cofundadora da Associação Juízes para a Democracia, Kenarik Boujikian, explica que a afirmação é uma bobagem.

“Se tivesse um mínimo risco, o juiz já teria decretado a prisão preventiva. Se não decretou é porque não há razão para o encarceramento. Não esqueçamos que os juízes brasileiros são considerados pródigos no decretar prisões”, declarou, em entrevista a CartaCapital.

Para a juíza, que esteve à frente de segunda instância durante 30 anos, o argumento que a decisão favorece a impunidade é falsa.

“Não podemos nos esquecer do percentual altíssimo de pessoas que estão presas provisoriamente. São presos que se encaixam na hipótese de prisão em flagrante e prisão preventiva (aquela que o juiz entendeu que a prisão era necessária durante o processo). No mínimo, cerca de 40% dos presos são provisórios”, conta.

A desembargadora ainda explica que o julgamento na segunda instância é confiável, mas não pode ser declarada a prisão de imediato, pois injustiças existem no sistema penal brasileiro. “Injustiças acontecem. O sistema recursal existe justamente pra que elas não aconteçam. Os dados que foram apresentados, especialmente pela Defensoria Pública e no voto de alguns dos ministros, mostram bem que muitas decisões são alteradas nas instâncias superiores.” Confira a entrevista completa:

CartaCapital: Como a senhora viu a decisão do STF sobre a segunda instância? 

Kenarik Boujikian: Considero que a decisão do STF começa a recolocar as coisas nos trilhos. A decisão anterior do STF, alterando a posição sacramentada desde 2009, impactou severamente a Democracia, especialmente no caso do presidente Lula, já que o afastou da participação, de forma direta ou indireta, da disputa eleitoral. O que se afasta é um projeto de país que era colocado em pauta, e aí temos o resultado: um Brasil de terra arrasada. Mas é importante registrar que a violação de uma norma fundamental atinge todas as normas.

Nossa Constituição Federal tem um núcleo forte, as chamadas cláusulas pétreas, que não podem ser alteradas ou diminuídas por ninguém e por nenhum dos poderes de Estado. Quando você rompe ou minimiza um destes princípios, rompe o equilíbrio do próprio Estado Brasileiro. Foi isso que o STF fez quando alterou a posição consolidada.

Agora, o STF retoma sua posição original, o que era esperado. A questão colocada era bem simples: quais as hipóteses de prisão nossa Constituição Federal estabelece? Prisão em flagrante ou por ordem de um juiz, nos casos de prisão preventiva e com a sentença condenatória transitada em julgado.

E quando acontece o trânsito em julgado? Quando não cabe mais recurso. Isto é conceito básico do Direito. A aprendizagem se dá nos primeiros anos da faculdade. Está escrito com todas as letras na Carta Magna. Então, o que o STF fez foi reafirmar o que está na Constituição Federal.

CC: Os críticos costumam dizer que a decisão do STF facilita a impunidade. Isso procede?

KB: Não há nenhum fundamento para afirmar que haverá impunidade e que todas as pessoas presas serão soltas. Isto é falso. Não podemos esquecer do percentual altíssimo de pessoas que estão presas provisoriamente. São presos que se encaixam nas prisões em flagrante e preventiva (aquela que o juiz entendeu que a prisão era necessária durante o processo). No mínimo, cerca de 40% dos presos são provisórios.

CC: As pessoas estão falando que bandidos serão soltos depois da decisão, se referindo ao quase 5 mil que podem ser libertados. O que a senhora pensa disso? A sociedade corre risco de segurança com essa decisão?

KB: É uma grande bobagem. Se tivesse um mínimo risco, o juiz já teria decretado a prisão preventiva. Se não decretou é porque não há razão para o encarceramento. Não esqueçamos: os juízes brasileiros são pródigos no decretar prisões.

CC: E porque é tão importante o trânsito em julgado antes de decretar uma prisão?

KB: O Estado Brasileiro adotou o princípio da presunção de inocência, que é acolhido nas normas internacionais, estabelecendo como marco o “trânsito em julgado”, porque a liberdade é um dos bens mais caros para a humanidade. E toda nossa estrutura jurídica é formatada neste sentido.

Claro que também há exceções, como a prisão em flagrante, a temporária e a preventiva. E ainda assim temos a terceira maior população carcerária do mundo! Por que? Porque injustiças acontecem.

O sistema recursal existe justamente para que elas não aconteçam. Os dados que foram apresentados, especialmente pela Defensoria Pública e no voto de alguns dos ministros, mostram bem que muitas decisões são alteradas nas instâncias superiores.

De acordo com o levantamento do IBCCRIM, somente com relação aos habeas corpus do STJ, cerca de 43% desta espécie de processo são originários do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e 32% foram deferidos, muitos de temas simulados, que já estavam consolidados.

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