Justiça

Comportamento de Judiciário em enterro de Vavá escancara a exceção

Se ainda havia alguma dúvida, o comportamento do Judiciário em impedir Lula de ir ao velório de seu irmão escancarou absurdos

Enterro de Vavá. Foto: Ricardo Stuckert
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O preso político pode ser definido como aquele cujas circunstâncias que envolvem a prisão não guardam relação com a aplicação regular da lei e, por consequência, com os parâmetros impostos pela democracia. Seu tratamento é especial, fora da previsibilidade da vida institucional, e sua prisão ocorre de acordo tão somente com a conveniência de quem conjuga o desejo e o poder de mantê-lo preso.

Presos políticos são comuns em regimes de exceção. Prende-se o sujeito não em função de ter cometido um delito, mas por que, de alguma maneira, representa uma ameaça a quem detém o controle dos mecanismos estatais de coerção. Foi assim nos processos de Moscou, no regime franquista, no Estado Novo de Vargas, nas ditaduras militares latino-americanas e em governos autoritários de modo geral.

O verniz da legalidade costuma ser utilizado como pretexto para legitimar prisões arbitrárias (afinal, nem o mais infantil regime autoritário fundamentaria a privação da liberdade de seus opositores em razão de não estarem alinhados ao governo ou a quem quer que seja). Não há a segurança de que julgamentos (quando ocorrem), condenações e prisões irão respeitar os ritos legais. Tudo passa a ser adaptado às conveniências do soberano, que, na definição de Agamben, é exatamente aquele que decide sobre o estado de exceção.

Não há dúvidas de que há completo sentido em afirmar que o ex-presidente Lula é um preso político

Sua epopeia processual ignora assustadoramente mesmo as previsões legais mais ordinárias, objetivas e diretas. Medidas são tiradas do bolso em franca contrariedade à lei e à Constituição para mantê-lo em sua cela. Exemplos abundam. Da tramitação recorde de seu processo na justiça federal, condicionado ao calendário eleitoral para que o ex-mandatário pudesse ser enquadrado na Lei da Ficha Limpa e assim fosse impossibilitado de concorrer às eleições, às manobras da ministra Carmen Lúcia para pautar o habeas corpus impetrado por sua defesa na frente das ações diretas de constitucionalidade que, impreterivelmente, iriam derrubar a possibilidade da prisão antes da condenação definitiva. O tratamento dispensado a Lula reflete a completa apropriação privada de nossas leis.

Apropria-se privadamente da lei ao aplicá-la (ou não) de acordo com quem seja o seu destinatário. Contra Lula, mesmo os inúmeros precedentes de candidatos condenados por órgãos colegiados que puderam concorrer às eleições (possibilidade prevista pela própria lei da Ficha Limpa em seu artigo 26-C, §1º) foram solenemente ignorados, assim como a possibilidade de encarcerados darem entrevistas. Algo fora do comum para um Estado que se diz democrático, de direito e que se auto-intitula republicano, baseado na impessoalidade e na igualdade (formal) perante a lei, fantasias senis das democracias liberais.

A situação de Lula põe em xeque essa igualdade formal. O último exemplo é a negativa de comparecer ao velório de seu irmão recém-falecido. O artigo 120 da Lei de Execuções Penais é categórico: é direito do preso sair do cárcere para participar dos ritos fúnebres de familiares. Não há espaço para interpretação diversa. Mas, uma vez que se trata do ex-presidente, foram criadas hipóteses não previstas em lei para negar-lhe esse direito: “este Juízo não é insensível à natureza do pedido formulado pela defesa. Todavia, ponderando-se os interesses envolvidos no quadro apresentado, a par da concreta impossibilidade logística de proceder-se ao deslocamento, impõe-se a preservação da segurança pública e da integridade física do próprio preso”, decidiu a juíza Carolina Lebbos mesmo diante do próprio PT ter oferecido aeronave para suprir a falta de condições logísticas mencionada pela juíza, que obviamente nutre nobres e verdadeiros sentimentos de preocupação com a ordem pública e com a integridade física do ex-presidente.

“O custodiado não é um preso comum, e a logística para realizar a sua escolta depende de um tempo prévio de preparação e planejamento”, opinou o Ministério Público sobre o caso. A saída do preso “tem de passar por juízos de razoabilidade e de proporcionalidade, como qualquer outro direito ou interesse”, decidiu o juiz federal Leandro Paulsen. O interessante é que, além de não haver previsão legal para tais fundamentações, não houve qualquer indício de objeções dessa natureza quando o ex-juiz e atual ministro da justiça Sérgio Moro levou apenas 22 minutos para, a partir do recebimento de ofício do TRF4, elaborar e tornar público o despacho que ordenou a prisão do ex-presidente após o julgamento de seu habeas corpus no STF. Antes mesmo da publicação da decisão e do início do prazo para a apresentação de recursos. Meses depois, o ex-juiz interrompeu suas férias para articular a derrubada de decisão do desembargador Favreto que soltava Lula. Em algumas horas a decisão viria abaixo. Sem que nenhum recurso fosse apresentado.

Após as sucessivas negativas da justiça federal, a defesa de Lula levou o caso para o STF, que, por meio de seu presidente, o ministro Dias Toffoli, ignorou a “impossibilidade logística” alegada pela primeira instância e autorizou a Polícia Federal a levá-lo a São Paulo – mas não sem antes impor uma série de restrições também tiradas não se sabe da onde; o ministro permitiu que Lula fosse à capital paulista, onde seu irmão está sendo velado, mas não para o velório, e sim para uma unidade da Polícia Federal onde poderá se encontrar com os familiares que, se quiserem, podem levar o corpo do irmão ao local (é a primeira liberação de preso para ir a velório de familiar desde que não vá ao velório). Toffoli também proibiu o uso de aparelhos celulares e da imprensa no encontro, além de impedir o ex-presidente de fazer declarações públicas. Repetiu Lebbos ao elencar a “segurança” como fundamento de sua decisão.

Em uma passagem de O Mercador de Veneza, de Shakespeare, Shylock fundamenta o respeito a uma dívida da qual é credor no fato de que, uma vez não cumprida a obrigação, não é o seu direito que cai, mas o próprio direito de Veneza. Ao submeter a lei a conveniências particulares, criando exceções ao sabor de desejos privados e inconfessáveis, não é apenas Lula que perde. É a própria democracia.

Gustavo Freire Barbosa é advogado

Foto: Ricardo Stuckert

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