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Cadê a prova?

Perícia contratada pela defesa de Appio contradiz laudo da PF e pode acelerar o retorno do magistrado

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O juiz coleciona atritos com o TRF-4 desde que começou a investigar os abusos da Lava Jato – Imagem: Justiça Federal/PR
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A justificativa usada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região para afastar o juiz Eduardo Appio da 13ª Vara Federal de Curitiba tem pés de barro. Em um pedido de liminar encaminhado ao Conselho Nacional de Justiça, o magistrado afirma não ser o autor das chamadas telefônicas que geraram sua punição, e acrescentou o resultado de uma perícia encomendada pela defesa que contradiz o laudo da Polícia Federal usado como “prova” das supostas ameaças feitas ao filho do desembargador Marcelo Malucelli.

Appio é acusado de telefonar para João Eduardo Malucelli, passando-se por um servidor da área da saúde da Justiça Federal, em 13 de abril deste ano. O diálogo teria sido gravado pelo filho do desembargador. No fim da conversa, o autor da ligação pergunta se João Malucelli “tem certeza de que não tem aprontado nada”, frase interpretada pelos desembargadores do TRF-4 como uma ameaça, o que levou o tribunal, por 13 votos a 4, a afastar o juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, antes mesmo de abrir espaço para a defesa se manifestar. Sem o devido contraditório, o TRF-4 determinou ainda a devolução dos computadores e do celular funcional utilizados pelo magistrado e o proibiu de ter acesso às dependências da Justiça Federal.

O magistrado punido recebeu o exíguo prazo de 15 dias para apresentar defesa, mas optou por recorrer ao Conselho Nacional de Justiça. Motivo? Namorado da filha do ex-juiz Sergio Moro, João Eduardo Malucelli figura como sócio do Wolff & Moro Sociedade de Advogados, escritório do senador e de sua esposa, a deputada federal Rosângela Moro. Após receber o telefonema “ameaçador”, ele procurou o futuro sogro para avaliar o que fazer, como o próprio Moro admitiu em entrevista à GloboNews. Há tempos, Appio investiga os abusos cometidos pela República de Curitiba, a começar pelas acusações do advogado Rodrigo Tacla Duran, um ex-colaborador da construtora ­Odebrecht que acusa Moro e o ex-procurador Deltan Dallagnol de extorqui-lo em troca de um vantajoso acordo de delação.

Não bastasse, o desembargador Marcelo Malucelli, passando por cima de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, tentou restituir a prisão de Tacla Duran logo após ele manifestar a intenção de retornar ao Brasil para apresentar provas das acusações contra Moro, Dallagnol e outros próceres da República de Curitiba. Somente depois de a manobra ser exposta, o desembargador reconheceu a própria suspeição para avaliar casos envolvendo o futuro sogro de seu filho. Por conta da lambança, o corregedor nacional de Justiça Luís Felipe Salomão decidiu fazer uma auditoria, batizada de “correição extraordinária”, tanto da 13ª Vara Federal de Curitiba, ocupada pelo juiz Appio até o fim de maio, quanto na Oitava Turma do TRF-4, responsável por revisar as decisões de primeira instância da Lava Jato.

Para provar que Appio não é o autor do fatídico telefonema, seus advogados encomendaram um novo laudo ao perito Pablo Arantes, professor-adjunto do Laboratório de Fonética do Departamento de Letras na Universidade Federal de São Carlos, em São Paulo. Segundo o especialista, não há indícios suficientes para sustentar que seja de Appio a voz registrada na gravação. A análise da PF, acrescenta, produziu um “falso positivo”, influenciado pelas constatações de que a voz era masculina e tinha sotaque sulista. “Se tomarmos a população combinada dos três estados da Região Sul, as vozes das amostras-padrão questionadas são dois falantes em um universo de, aproximadamente, 15 milhões de pessoas. Levando em conta que as duas vozes fazem uso de um registro melódico relativamente mais baixo do que a média da população, esse número pode ser reduzido para, aproximadamente, 5 milhões, (…), o que, do ponto de vista da possibilidade de um falso positivo na identificação, é inaceitavelmente alto”, registrou no parecer. Arantes é categórico ao afirmar que “o resultado nem corrobora nem contradiz a hipótese” de a voz ser de Appio. In dubio, pro reo.

Toffoli concedeu habeas corpus preventivo para Tacla Duran depor na câmara contra Moro e Dallagnol

Além disso, os defensores Walfrido Warde, Rafael Valim e Pedro Serrano, este último colunista de CartaCapital, sustentam que houve violação da cadeia de custódia das provas, que podem ter sido manipuladas. “Os celulares através dos quais foram realizados os supostos diálogos nem sequer foram apreendidos ou periciados. Ademais, a violação à cadeia de custódia assume proporções particularmente graves quando se sabe que o Excelentíssimo Senhor Senador Sergio Fernando Moro reconheceu, explicitamente, que atuou diretamente nas questões objeto do presente pedido de avocação”, diz um trecho da petição que requer a restituição do juiz natural na 13ª Vara Federal de Curitiba em caráter liminar.

Sem uma prova cabal de que Appio é o autor do telefonema, parece pouco provável que o pleito seja rejeitado. Vale ressaltar que o TRF-4, rigorosíssimo para punir o suposto trote, sempre fechou os olhos para os numerosos abusos cometidos por Moro, quando ele era o titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, a exemplo da divulgação de uma conversa telefônica da então presidenta Dilma Rousseff fora do período autorizado judicialmente, do grampo em 25 ramais do escritório de advocacia que defendia Lula e da espetaculosa condução coercitiva do petista antes de sequer chamá-lo a depor. Todos esses malfeitos só foram censurados pelo STF tempos depois, quando a Corte anulou as condenações do atual presidente.

O retorno de Appio é uma notícia indigesta, sobretudo, para Deltan Dallagnol, que teve o mandato de deputado federal cassado pelo TSE por fraudar a Lei da Ficha Limpa – pediu exoneração do cargo de procurador da República meses antes do prazo exigido pela legislação eleitoral para escapar da provável punição em 15 reclamações no Conselho Nacional do Ministério Público. Sem foro privilegiado, ele fica mais exposto às acusações de Tacla Duran, que acaba de receber um habeas corpus preventivo do ministro Dias Toffoli para depor na Câmara em 19 de junho. Não bastasse, o Conselho Nacional de Justiça abriu uma investigação sobre possíveis irregularidades na gestão de um fundo privado criado em 2019 para gerir multas e ressarcimentos ligados à operação Lava Jato.

O fundo chegou a receber 2,66 bilhões de reais de uma multa aplicada à Petrobras nos EUA. A iniciativa foi criada por meio de um acordo entre a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba e a Petrobras. Posteriormente, o ministro Alexandre de Moraes anulou o acerto. O CNJ quer saber o montante exato depositado à época, qual é a ­atual situação desse fundo e como foram geridos os recursos disponíveis. •

Publicado na edição n° 1263 de CartaCapital, em 14 de junho de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cadê a prova?’

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