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Barrado no Congresso, canabidiol avança pela Justiça e investimentos privados

A Bancada da Bíblia impede o avanço da discussão; novas pesquisas sobre o composto receberão aportes de 15 milhões de reais

Ciência. USP, Unifesp e Federal da Paraíba conseguiram aportes para avançar nos estudos sobre os efeitos da cannabis em diferentes tratamentos
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Estudo realizado nos Estados Unidos pela Universidade de Augusta e publicado na primeira semana do ano na revista científica Cannabis and Cannabinoid Researchs apresentou evidências de que o uso do canabidiol, também conhecido como CBD, traz importantes efeitos benéficos na redução do glioblastoma, o mais agressivo tipo de câncer cerebral conhecido. Em testes de laboratório realizados com células retiradas de tecidos humanos e implantadas em camundongos, o componente da maconha, segundo o estudo, “proporcionou significativa redução do tamanho do tumor e do microambiente tumoral estabelecido pelas células cancerosas, incluindo vasos sanguíneos e outros fatores de crescimento e disseminação”.

A novidade é um alento para pacientes, hoje submetidos a uma difícil cirurgia seguida por sessões de quimioterapia, e veio se somar à extensa lista de ­doenças que têm seus efeitos diretos ou secundários tratados com o canabidiol e outros derivados da planta. Atualmente, a substância é aplicada no tratamento de males como ansiedade e depressão, mal de Parkinson, Alzheimer, epilepsia, transtorno pós-traumático, diabetes, endometriose, enfermidades metabólicas em geral e até obesidade. Mas, enquanto o mundo avança no conhecimento e nas aplicações do uso medicinal da maconha, o Brasil divide-se entre um dinâmico setor científico e acadêmico que de forma constante apresenta novos estudos e pesquisas – e obtém financiamento – e um errático setor político e governamental que empurra o tema com a barriga, bloqueado por impasses e interesses comerciais e reacionários.

No Brasil, ao menos seis estudos clínicos em andamento desde o fim do ano passado ou que começarão em 2022 receberão aportes que chegam a 15 milhões de reais para testar o uso do canabidiol no alívio de diversas doenças. O investimento em pesquisa sobre este e outros derivados da cannabis ainda depende quase exclusivamente da iniciativa privada, interessada em um mercado que em 2021, segundo estimativa de analistas, movimentou cerca de 40 milhões de reais, gastos em sua maior parte na importação de medicamentos sem autorização de produção ou não gerados em escala em território nacional. O aporte milionário foi feito pela empresa farmacêutica brasileira Greencare e financiará estudos realizados pela USP sobre mal de Parkinson, pela UFPB sobre ansiedade e depressão e pela Unifesp sobre endometriose.

Novas pesquisas sobre a substância receberão aportes empresariais de 15 milhões de reais

A pesquisa em estágio mais avançado é desenvolvida pela Unifesp, em parceria com a Sociedade Brasileira de Endometriose, e é o primeiro trabalho científico a analisar os efeitos do canabidiol no combate à doença. Os resultados parciais revelam que a substância tem efeitos positivos no controle das dores provocadas pela inflamação ou lesão do endométrio, tecido localizado no interior do útero. A doença, segundo dados da Anvisa, acomete 10% das brasileiras, especialmente na faixa entre 25 e 35 anos: “Os estudos mostram que o canabidiol é uma medicação efetiva e que não faz nenhum sentido considerá-lo algo ilícito”, diz Eduardo Schoor, coordenador do estudo e presidente da SBE. O médico acrescenta que os resultados obtidos serão possivelmente repetidos em relação a outras doenças que apresentam mecanismo de dor similar, como a artrite reumatoide e a fibromialgia.

Em Ribeirão Preto, a USP estuda há sete anos os efeitos positivos do canabidiol no tratamento dos sintomas não motores do mal de Parkinson. Na cidade paulista começou a funcionar, em novembro, o Centro de Estudos em Canabidiol, o primeiro do gênero no ­País, que reúne pesquisadores e projetos de diferentes áreas e tem o objetivo de apresentar respostas sobre o tratamento de doenças como Alzheimer, epilepsia e estresse por fadiga (Burnout). Com investimento de 13 milhões de reais para a construção de uma área de 1,5 mil metros quadrados, com estrutura para laboratórios e consultórios, o Centro, localizado ao lado do Hospital de Saúde Mental, conta com 50 cientistas.

Em São Paulo, com investimentos da empresa canadense Verdemed, pesquisadores do Instituto do Coração e da USP realizam um estudo, com duração prevista de dois anos, sobre os efeitos do canabidiol no tratamento da insuficiência cardíaca e outros distúrbios cardiovasculares. Em outubro passado, uma pesquisa publicada pela revista científica­ ­­Neuropsychopharmacology apontou que pacientes tratados com o componente da maconha têm menos chances de sofrer infartos ou acidentes vasculares cerebrais: “O canabidiol melhora a motilidade do coração e a contratura do miocárdio ao promover uma vasodilatação periférica do órgão”, diz o estudo.

Falta votar. “A Câmara discutiu o suficiente”, diz Teixeira

No InCor, a pandemia suscitou novas pesquisas com o canabidiol, seja para o tratamento das sequelas provocadas pela Covid ou para amenizar o estresse e o cansaço dos profissionais de saúde da linha de frente do combate à doença. Iniciado no fim do ano e com duração prevista de três meses, estudo com 290 voluntários que ainda se mostram debilitados mesmo depois de vencer a infecção pelo Coronavírus busca resultados positivos no tratamento de sequelas como insônia, fadiga muscular, depressão, ansiedade e irritação. Em 2020, um teste clínico realizado pela USP com 120 médicos e enfermeiros submetidos a “esgotamento físico e mental extremo no combate à Covid” obteve sucesso ao reduzir nesses voluntários os sintomas de ansiedade (60%), depressão (50%) e fadiga emocional (25%).

No plano político, a aceitação da maconha e seus derivados é um processo muito mais lento. Na Câmara dos Deputados, o PL 399, que cria regras para o plantio e a comercialização da ­cannabis com fins medicinais, tramitou a passos de cágado por sete anos até, finalmente, ser aprovado, no ano passado, pela Comissão Especial criada para tratar do tema. A aprovação teve caráter conclusivo e somente foi definida com o voto de minerva do relator, o deputado Luciano Ducci, do PSB, após empate em 17 a 17. O projeto deveria seguir para análise do Senado, mas um recurso apresentado pelo deputado Diego Garcia, do Podemos, obriga a submissão da proposta ao voto do plenário, com resultado imprevisível.

O PL tem apoio da maioria dos líderes partidários, o que em tese garantiria sua aprovação, mas a pressão feita por parlamentares, sobretudo integrantes da Bancada da Bíblia, levou o presidente da casa, Arthur Lira, do PP, a não incluir o tema na lista de votação no ano passado. Lira não atendeu aos pedidos de entrevista.

A Bancada da Bíblia impede o avanço da discussão no Congresso

Presidente da Comissão Especial, o deputado Paulo Teixeira, do PT, afirma “estar mais do que na hora” de aprovar a lei que beneficiará dezenas de milhares de famílias que hoje encontram dificuldades de acesso aos tratamentos à base de canabidiol e outros derivados. “A Câmara já discutiu o suficiente. É hora de aprovarmos essa matéria e a enviarmos ao Senado. Para deslanchar e qualificar o debate sobre o uso medicinal da ­cannabis na sociedade brasileira é preciso, antes de qualquer outra coisa, aprovar o PL.” Teixeira aguarda um gesto positivo de Lira, mas reconhece a pressão política em contrário: “Quem segura é a bancada evangélica, aliada dos negacionistas”.

Em dezembro, a Agência de Vigilância Sanitária aprovou a importação do oitavo medicamento à base de cannabis, um composto de canabidiol produzido pela Verdemed. Foi a terceira aprovação em um espaço de apenas dois meses. Com a autorização, a empresa está liberada para trazer ao Brasil o produto pronto para uso, além de fazer sua distribuição e comercialização. Assim como os medicamentos aprovados desde dezembro de 2019, quando a Anvisa concedeu a primeira permissão, o canabidiol produzido pela empresa canadense poderá ser adquirido em farmácias e drogarias mediante prescrição médica.

Segundo o advogado Rogério Rocco, ex-integrante do Conselho Estadual de Entorpecentes do Rio de Janeiro, o atual “momento de atraso na sociedade brasileira” impede que a discussão sobre o uso dos derivados da maconha seja levada adiante. Rocco é cético em relação à aprovação do PL 399 e diz que os avanços na importação se devem a decisões judiciais. “Hoje é fácil ganhar uma liminar, e é evidente que a Anvisa se adapta a uma nova realidade que o Poder Judiciário impôs.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1191 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JANEIRO DE 2022.

CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS: ISTOCKPHOTO E SÍLVIO AVILA/HCPA – GABRIEL PAIVA/PT NA CÂMARA

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