Justiça

As leis sócio-ambientais afrouxadas foram outra barragem destruída

Reforma trabalhista, tão denunciada por sua inconstitucionalidade, mostra suas garras

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“Minas não é palavra montanhosa

É palavra abissal

Minas é dentro e fundo

As montanhas escondem o que é Minas.

No alto mais celeste, subterrânea,

é galeria vertical varando o ferro

para chegar ninguém sabe onde.

Ninguém sabe Minas. ”

– A Palavra Minas, Carlos Drummond de Andrade.

Mineiro desde que se entende por gente observa as montanhas no horizonte e sabe que, por trás, a mineração trata de mastigá-las. Resta a “casca”, quando resta. As montanhas e a mineração se misturam às entranhas de nós, mineiros, assim como o mar fala àqueles que vivem em sua beira.

As Minas são muitas minas. Muitas e, desde sempre, super exploradas. Drummond nos entregava essa ideia em palavras. Assim como o fez, por exemplo, em seu poema Canto Mineral. Eu só consigo senti-la. Mas talvez por isso um desastre em uma das minas seja sentido como um desastre na casa de cada mineiro.

A tragédia que assolou a barragem de Brumadinho, infelizmente, era mais que anunciada.

Em julho de 2018, quando da votação do PL 3.676/16, ainda na Comissão de Minas e Energia da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, seu autor, o Deputado João Vitor Xavier, afirmou de forma categórica que, sem alterações nos marcos regulatórios, novos rompimentos de barragem, em breve, ocorreriam. Sua contundência não foi suficiente para sensibilizar seus pares, de modo que sua proposta de alteração legislativa morreu no nascedouro. E naquele momento todos ainda tínhamos presentes, na mente, a tragédia de Mariana…

Os relatórios oficiais da Agência Nacional de Águas indicam pelo menos 45 empreendimentos no País que, segundo treze órgãos de controle, estão em situação de risco “preocupante”, por possuírem comprometimento importante que impacta na segurança. Dentre esses, encontram-se cinco barragens situadas em Minas Gerais, mas não estava a barragem do Córrego do Feijão em Brumadinho. Viveremos de tragédias? Contaremos com a sorte? É unanimidade o clamor por responsabilização da Vale, mas assistimos ao mesmo na época da tragédia de Mariana e de nada, ou de muito pouco, adiantou. É evidente que tem que ser percorrido o caminho da responsabilização empresária de forma exemplar. Mas isso não é minimamente suficiente.

É o Estado Democrático de Direito que encontra-se, mais uma vez, diante de uma encruzilhada. Aparentemente, o “Mercado” insiste em dizer ser impossível conciliar política de crescimento econômico e um patamar mínimo civilizatório de direitos. Só que o mundo dos fatos nem sempre pode ser escondido por sofismas. E, por vezes, tufões, maremotos ou o rompimento de mais uma barragem vem para escancarar a realidade.

Retrocesso em leis sócio-ambientais

Pois no mundo dos fatos, a combinação bombástica de falta de marco regulatório eficaz no sentido da proteção ambiental, falta de valorização da fiscalização estatal (ainda mais após a Emenda Constitucional 95/2016, que instituiu regime de alta restrição de gastos públicos), super exploração de trabalho humano (Lei 13.467/2017) e sanha por lucros cada vez maiores sob o argumento de volatilidade de capital acarretou, ou pelo menos contribuiu de forma significativa, para a tragédia de Brumadinho, ao que tudo indica o maior acidente de trabalho da história do Brasil.

Aliás, como não pensar, neste momento de tragédia, que a Lei 13.467/2017 (comumente denominada como Lei da Reforma Trabalhista), vigente desde novembro de 2017, instituiu um regime de tarifação dos danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho, fixando, como montante máximo, uma indenização equivalente a até cinquenta vezes o último salário contratual do ofendido (art. 223-G, §1º, IV, da CLT)?

Isso pode significar, por exemplo, que o familiar de um empregado da Vale, que perdeu a vida no acidente de trabalho, seja reparado em valor inferior ao familiar de um residente ribeirinho, muito embora ambos tenha sido levados pela mesma lama. Afinal, o Código Civil não estabelece a limitação ora existente na CLT. Outra hipótese possível, nesse contexto, é que o familiar de um trabalhador que perdeu a vida no desastre de Mariana, ocorrido antes da entrada em vigor da chamada Reforma Trabalhista, receba uma compensação em valor maior do que o familiar do trabalhador que faleceu no acidente de Brumadinho. Não é estarrecedor? Desnecessário mencionar que, diante do contexto exposto, um trabalhador ofendido que recebesse salário no valor equivalente ao mínimo legal estaria sujeito a uma indenização máxima que não alcançaria cinquenta mil reais.

A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA) ingressou, ainda no final do ano de 2017, no Supremo Tribunal Federal, com a ADI 5870, que, entre outras medidas, requer a suspensão da eficácia da mencionada tarifação, com declaração da inconstitucionalidade do parágrafo 1º, do art. 223, da CLT. A medida liminar vindicada, a fim de que houvesse a imediata suspensão da tarifação, foi negada. E o mérito da ação não foi, até o presente momento, apreciado.

O curioso é que o desastre de Brumadinho nos abala justamente enquanto supostos “novos” políticos pregam a necessidade de flexibilizar, ainda mais, as delimitações legais relativas ao meio ambiente e à exploração do trabalho humano. Onde chegaremos sem a mínima limitação Estatal por eles desejada e prometida, quando a legislação atual, tão atacada como “rigorosa”, não foi suficiente para evitar uma tragédia com centenas de trabalhadores desaparecidos? Será que, de fato, esse discurso se adequa à nossa realidade? Ou a sociedade não se atenta para os reflexos secundários de legislações sociais e ambientais frouxas?

O Poder Público tem que entender sua responsabilidade: não há mais espaço para conivência ou omissão. O Estado não existe para viabilizar os desejos do “Mercado”. E ele só se justifica se cumprir o seu mister: estabelecer limites em prol do bem comum, viabilizando a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Trata-se de mandamento constitucional (art. 3º). Ao falhar no seu papel, esfarela-se. Espero que a tragédia leve todos a uma profunda reflexão. Vulnerar ainda mais as legislações que visam à proteção dos limites mínimos civilizatórios e ignorar nossos ditames Constitucionais nos levará a embarcar, definitivamente, no rumo da barbárie.

Marina Caixeta Braga é Juíza do Trabalho em Minas Gerais.

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