Justiça

Disputa por indenizações da Samarco tem ameaças, honorários milionários e ‘caça’ a atingidos

O MPF investiga a relação entre a fundação criada pela empresa, o juiz do caso e advogados contratados para defender as vítimas do desastre

A advogada Richardeny Lemnke e atingidos comemoram, em Linhares (ES), um acordo individual entre os atingidos e a fundação criada pela Samarco (Foto: Reprodução)
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Belo Horizonte – Há uma semana, um morador da cidade mineira de Conselheiro Pena teve que deixar o lugar onde morou por toda a vida por medo de retaliação. O motivo? Ele desconfia que um mecanismo criado pela Justiça com o apoio da Samarco, cujo objetivo anunciado é agilizar o pagamento aos atingidos pelo rompimento da barragem do Fundão em Mariana, esteja na verdade prejudicando as vítimas do maior desastre socioambiental do País.

“Eu sou contra porque todo mundo que adere sai perdendo, ganha menos do que deveria e ainda tem que abrir mão dos direitos coletivos”, contou Antonio*, sob anonimato. O chamado Sistema Indenizatório Simplificado foi criado no ano passado pela 12ª Vara Federal de Belo Horizonte, com apoio da Fundação Renova, entidade foi criada por Samarco, Vale e BHP para fazer reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem.

Advogados contratados para defender as vítimas teriam recebido honorários milionários pagos pela Fundação Renova

Para integrar esse sistema, os atingidos formam comissões coordenadas por advogados. A intimidação, diz ele, também é feita por integrantes dessas comissões. “Tentei alertar colegas e recebi ameaças dos próprios moradores, que estão com medo acabar sem nenhuma reparação.”

O objetivo é fazer com que as vítimas fechem acordos com a Fundação Renova, sob a promessa de desfecho mais rápido que por meio da ação coletiva proposta pela força-tarefa que envolve o Ministério Público Federal e o Ministério Público de Minas Gerais, além da Defensoria Pública Federal e as defensorias estaduais de Minas e Espírito Santo.

O mecanismo opera com conhecimento e autorização de Mário de Paula Franco Júnior, o juiz responsável pelo caso. No dia 31 de março, a CartaCapital revelou, em primeira mão, que a força-tarefa pediu o afastamento do magistrado por suposta parcialidade na condução desses processos. O prazo para que Mário de Paula se posicione oficialmente sobre o pedido vence amanhã 27. 

Um mandado de segurança impetrado pelo Ministério Público Federal e obtido com exclusividade por CartaCapital mostra indícios de estreita ligação entre o juiz de Paula e uma das principais advogadas responsáveis por essas comissões.

Honorários milionários

Responsável por pelo menos 5 das 13 comissões de atingidos instauradas até outubro do ano passado, Richardeny Lemke se formou em Direito em 2007, Desde então, segundo o documento do MPF, advogou sozinha na cidade mineira de Aimorés, sem registros de atuação em qualquer outro processo coletivo. Sua inscrição suplementar na OAB do Espírito Santo, sede atual do seu escritório, foi feita há menos de um ano. De acordo com o cadastro nacional de advogados, capital social declarado do seu escritório, com sede em Baixo Guandu (ES) é de apenas 12 mil reais.

Em pouco tempo, Richardeny faturou, segundo levantamento feito por fontes ligadas à investigação, mais de 6 milhões de reais em honorários advocatícios. Suspeita-se que  atingidos estejam sendo prejudicados nos acordos feitos por ela, recebendo indenizações inferiores ao que poderiam receber se optassem pela ação coletiva. 

Atingidos pela tragédia denunciam ameaças de morte, após pedido de afastamento do juiz Mário de Paula Franco Júnior

Além disso, há informações de que colegas de faculdade dela teriam chegado ao comando das comissões por intermédio dela. O documento do Ministério Público Federal ironiza: “Ou o Centro Universitário do Espírito Santo, em Colatina, é um fenômeno na formação de juristas inclinados ao processo coletivo, ou estamos presenciando uma trama orquestrada para capturar as comissões (…) e causar um prejuízo deliberado aos direitos dos atingidos”

Ainda de acordo com o MPF, Vale, BHP, Samarco e Renova estariam “ansiosas para serem processadas” e cumprir a decisão judicial que, em teoria, representa uma vitória desses advogados. “Tanto é assim que as rés sequer estão recorrendo das decisões.”

Em um vídeo que circula em redes sociais, gravado em outubro de 2020, Richardeny comemora, ao lado de moradores de Linhares (ES) a vitória em uma sentença rápida, de acordo individual entre os atingidos e a Fundação Renova. Ao final, um dos moradores agradece nominalmente o juiz Mario de Paula.

Em 2015, a lama vertida pela barragem da Samarco em Mariana percorreu 600 quilômetros pela Bacia do Rio Doce, até tingir de marrom as esverdeadas águas do litoral capixaba. (Foto: Gabriela Biló/Estadão Conteúdo)

91 depósitos bancários em 1 dia

Outra advogada implicada nas investigações é Bruna Pereira do Vale Ferraz Raggi, responsável por pelo menos três comissões de atingidos na Bacia do Rio Doce. Extratos de sua conta bancária aos quais a CartaCapital teve acesso com exclusividade mostram depósitos realizados pela Fundação Renova.

Em apenas um dia (29 de dezembro), a Fundação Renova realizou 91 transferências para a advogada, com valores entre 2,4 e 8,9 mil reais. Somente naquele mês foram 191 depósitos. O saldo final do extrato chega a quase 2 milhões de reais.

Num áudio obtido pela reportagem, um dos clientes de Bruna mostra perplexidade ao ver os depósitos realizados: “A Fundação Renova, que eu estranhei, está depositando muito dinheiro na conta dela, olha pra você ver. Vez ou outra ela recebe. Se ela é defensora dos atingidos, porquê recebe da Renova? Essa mulher é louca de colocar um extrato desse que é intimidade dela em grupo. Não sei se ela queria mostrar pra atingido que ela não precisa de dinheiro de atingido. Eu não sei o que ela quis dizer com isso aí não”. 

Um outro cliente de Bruna Raggi, que preferiu não se identificar, disse a CartaCapital ter sido intimidado por contestar o acordo depois de já tê-lo assinado. “Quando questionei ter assinado um contrato sem saber que abriria mão de meus direitos futuramente, como a quitação integral e os cerca de R$ 1.700,00 que recebia por mês, Ela me disse para que eu deixasse de acusá-la.” conta. “Esse dinheiro mensal, agora, faz falta para sustentar minha família e descobri que a minha indenização individual foi muito menor do que seria se fosse no processo coletivo”. 

Assim como ele, muitos outros atingidos contam que foram levados a assinar contratos sem compreender o seu teor — ou pela complexidade do conteúdo técnico, ou por serem analfabetos. Muitos falam em uma ‘invasão’ de advogados.

Neste vídeo, um homem que aparece em um escritório de advocacia aparentemente improvisado, recusa-se a assinar uma procuração para que um advogado entrasse com a ação indenizatória em seu nome. “Dar uma procuração a um desconhecido é um risco muito grande”, diz.

A ‘invasão’ de advogados

“Depois que pediram para o juiz Mário de Paula sair do caso, vieram para Tumiritinga (MG) diversos advogados forasteiros batendo de porta em porta. Eles oferecem pra gente rapidez para resolver os pagamentos de indenização. Como tem muita gente passando necessidade, por não poder pescar ou trabalhar na agricultura perto do Rio Doce, muitos aceitam a proposta, mesmo sem entender direito o que está no documento”, conta uma moradora que não quis se identificar. Segundo a Fundação Renova, Tumiritinga sequer está entre as 22 cidades de Minas Gerais e do Espírito Santo com acesso ao Sistema Indenizatório Simplificado.

Diante do fenômeno, um carro de som passou a percorrer a cidade alertando os moradores para não entregarem seus documentos para pessoas que se dizem advogados ou representantes da Renova. A orientação é para que, nesses casos, o morador chame a polícia. Ouça o alerta.

Moradores de várias outras cidades ao longo da Bacia também relatam visitas de advogados desconhecidos. Com o assédio desses profissionais muitos atingidos se interessam em entrar para Comissões acreditando, com isso, receber mais rapidamente as indenizações.

5% de comissão: o papel dos atingidos

Fontes ligadas à investigação apontam, também, que supostos atingidos trabalhariam captando clientes para os advogados das comissões, em troca do recebimento de 5% do valor da causa. Essas pessoas teriam o trabalho de convencer outras vítimas a aderir ao Sistema Indenizatório Simplificado. Nesse vídeo, a senhora que aparece conversando com um grupo de moradores ressalta que tem buscado levar ao juiz Mário de Paula provas da necessidade de indenização aos atingidos que trabalham de maneira informal, como lavadeiras e pescadores sem registro, por exemplo. Ela é Terezinha Guês, conhecida como dona Tetê. 

Em uma troca de mensagens, dona Tetê convoca uma outra suposta liderança, também apontada por fontes ligadas à investigação como captadora de clientes, a ir à luta com ela, para defender o seu “troquinho”. Isso daria a entender, para os investigadores, que Tetê recebe para captar atingidos para comissões. 

Neste outro vídeo, de uma reunião da Câmara Técnica de Organização Social e Auxílio Financeiro Emergencial do Comitê Interfederativo (CIF), dona Tetê aparece dizendo que a Fundação Renova induz o impactado ao erro. “Eu estava numa situação muito complicada, precisando de dinheiro, mas minha honestidade fala mais alto! Porque se eu recebesse como pesca, nenhuma das artesãs em Baixo Guandu iria receber, porque fui eu que dei início a esse projeto de artesão. Eu me senti impactada, eu me senti destruída, porque hoje eu não posso ir no rio buscar minha argila, minha areia, minhas conchas e minhas pedras. Eu fazia peças lindíssimas, que eu vendia aqui em Vitória (ES), na Feira do Verde, na feira solidária. E assim eu mantinha minha família. Eu peço pelo amor de Deus”.

Ao que parece, dona Tetê mudou de ideia. Documentos oficiais apontam que ela recebeu indenização pelo Sistema Indenizatório da 12ª Vara Federal como pescadora e também como artesã, o que seria considerado ilegal uma vez que ela mesma disse nunca ter trabalhado com pesca. A advogada responsável pela Comissão da qual dona Tetê faz parte é Richardeny Lemke.

Com a palavra, os envolvidos:

Em nota, a Fundação Renova informa que:

“O Sistema Indenizatório Simplificado foi implementado em agosto de 2020 pela Fundação Renova, a partir de decisão da 12ª Vara Federal em ações apresentadas por Comissões de Atingidos das localidades impactadas. O primeiro pagamento pelo sistema foi realizado no início de setembro de 2020. Por meio desse fluxo é possível indenizar categorias com dificuldade de comprovação de danos pelo rompimento da barragem de Fundão (MG) como lavadeiras, artesãos, areeiros, carroceiros, extratores minerais, pescadores de subsistência e informais, entre outros. Até abril, o total de pessoas indenizadas neste sistema chegou a 11,8 mil, e o montante pago é de cerca de R$ 1,07 bilhão. A Fundação Renova permanece dedicada ao trabalho de reparação dos danos provocados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), propósito para o qual foi criada. Cerca de R$ 12,2 bilhões foram desembolsados pela Fundação Renova até o momento, tendo sido pagos R$ 3,46 bilhões em indenizações e auxílios financeiros para mais de 320 mil pessoas.”

Questionada a respeito dos depósitos nas contas bancárias de advogados, a Fundação respondeu:

“De acordo com a sentença judicial, o advogado que representa o requerente deverá indicar a sua conta bancária para o recebimento dos honorários e a conta bancária do requerente para o recebimento da indenização, fazendo o upload do contrato de honorários na plataforma on-line denominada Portal do Advogado, no site da Fundação Renova.

Os honorários são limitados pela sentença judicial a, no máximo, 10% do valor da indenização. Após a homologação pelo Juízo, a Fundação Renova realiza o pagamento de indenização ao atingido. Se houver indicação de honorários advocatícios, a Fundação realiza o depósito direto para o advogado, como determina a decisão judicial, descontando do valor da indenização.

Atualmente, cerca de mil advogados se cadastraram no Sistema para representar atingidos. Para ingressar no Sistema Indenizatório, as pessoas devem ser representadas por advogado ou defensor público, segundo sentença judicial.”

As advogadas Richardeny Lemke e Bruna Pereira do Vale Ferraz Raggi não responderam às nossas mensagens até o fechamento da reportagem. Nossa produção não conseguiu contato com o juiz Mário de Paula Franco e com Terezinha Guês. 

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