Justiça

Algemas como limite de cidadania

Ministério Público e Judiciário prendem para aparecer bem para a opinião pública e assim ninguém falar de seus altos salários e auxílios

Apoie Siga-nos no

Você, sim você, que está lendo estas palavras no computador, no celular, neste momento, pense em uma hipótese comigo. Se você encontrasse um policial, um deputado, ou uma autoridade qualquer, e essa autoridade, sem motivo algum, por uma paranoia momentânea, uma crise de autoritarismo, porque talvez não tivesse ido com a sua cara, acusasse você de qualquer coisa, estupro, o roubo da semana passada, porte de drogas – de uma droga que a própria autoridade iria providenciar – e algemasse você, levasse você preso para ser exposto no jornal das oito, imagine isso, imagine o que aconteceria.

Imaginou, pensou na hipótese? Agora continuemos, o que você acha que aconteceria com você? Nada, continuaria preso, porque todo mundo, inclusive você, quando vê uma pessoa algemada na televisão, no jornal, nas redes sociais, não espera processo, não espera pronunciamento da justiça, e aponta logo o dedo: bandido, deve ficar preso.

Do jeito que a coisa anda, com todo mundo aplaudindo quando uma pessoa é presa, elogiando a justiça quando uma pessoa é encarcerada, mas xingando a mesma justiça quando uma pessoa é solta, em pouco tempo não vai mais sobrar ninguém para aplaudir, estaremos todos presos.

Essa necessidade de ver pessoas presas nasce sim do sentimento de impunidade, do sofrimento de qualquer um que já teve o celular roubado, que paga impostos altíssimos sem ver nenhum benefício, que vê o playboy passar em uma Mercedes sem nunca ter trabalhado, é um sentimento bem abstrato e amplo, um espectro que paira sobre toda a sociedade.

Uma sociedade sofrida que precisa ver pessoas sofrendo para amenizar o próprio sofrimento, independentemente de quem sofra. Não importa se a pessoa presa não foi a que furtou o meu celular, se alguém está algemado na televisão, se alguém está sofrendo porque cometeu um crime, que bom, alguém está pagando, alguém está sofrendo mais do que eu, um alívio. Nessa sociedade de troca, sempre quando alguém perde, a sensação dos outros é de ganho, uma imolação, como toda a imolação, para diminuir a dor geral.

Não é de se admirar o prestígio que goza a polícia nos dias de hoje, porque é ela quem normalmente prende. Todos querem ser polícia para prender também, Ministério Público e Judiciário prendem para aparecer bem para a opinião pública e assim ninguém falar de seus altos salários, auxílios, carros oficiais, etc. A prisão de qualquer pessoa causa um êxtase, é a catarse que possibilita tudo continuar como sempre foi.

O interessante é que o prestígio da polícia, como quase todo mal, só serve para os outros. Temos uma sociedade que não gosta de ir à delegacia, tem horror de ser intimada, implora para não ter que prestar testemunho e muitas vezes sequer faz um boletim de ocorrência quando é vítima de um crime, em suma, uma sociedade que não acredita na polícia para ela mesma.

Mas quando é o outro, uma outra pessoa, um desconhecido, que está na delegacia, preso, acusado de um crime, a polícia é o órgão mais capaz e imune a erros do mundo. A contradição é a imagem perfeita de uma sociedade individualista, egoísta, que sofre com essa dor tão dispersa, mas goza quando essa dor é individualizada em um desconhecido qualquer.

Leia também: Eu, mulher e juíza pelos direitos humanos

Prender é o verbo. Soltar a ofensa. E nessa fixação, morre a Justiça, que é diálogo, que é sempre a possibilidade, a prioridade mesmo, da liberdade. Doente uma sociedade que fica feliz quando ocorre uma prisão, que não passa da demonstração do seu próprio fracasso como sociedade humana.

Volto a me dirigir a você. Então, não importa se você é de direita ou de esquerda, prender e soltar já se misturou com o sentimento moral de todos nós, foi preso, é bandido. E chamar alguém de bandido é o sinal, a autorização para se tirar qualquer dignidade, qualquer aspecto de cidadania, daquela pessoa presa.

O limite da cidadania está nas correntes e naquelas pequenas argolas com fechaduras que se chamam algemas, esvaziando a política, submetida à polícia, e, quando você for preso, por qualquer motivo, não vai adiantar gritar por Justiça, pois a que temos, a justiça atual, já foi feita naquele exato momento das algemas, que terão algemado também a sua voz, a sua dignidade. Você não será mais você.

Luís Carlos Valois é Juiz de direito no Amazonas, mestre e doutor em direito penal e criminologia pela USP, pós-doutorando em criminologia em Hamburgo – Alemanha, membro da Associação de Juízes para Democracia e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.